Por Hélio Higuchi (*)
O cruzador USS Saint Louis (CL-49) da Marinha dos Estados Unidos (US Navy), ganhou o apelido de “Lucky Lou” (“Lou, o sortudo”), por ter participado com distinção em grandes batalhas durante a 2ª Guerra Mundial, onde sobreviveu a inúmeros ataques sofridos pelo inimigo e, mesmo avariado, permaneceu em ação, sendo condecorado por nove “Battlestars”, condecoração da US Navy conferida a navios que participaram em batalhas navais. Transferido para a Marinha Brasileira, em 1951, e batizado como Tamandaré (C-12), teve também uma carreira destacada, sendo o derradeiro cruzador a serviço da força.
Sua gênese
Classificado na Marinha dos EUA como CL, de “Light Cruiser” (cruzador leve ou ligeiro, em português), e incorporados de 1936 a 1938, esta classe diferia dos outros cruzadores por serem mais leves (10.000t), rápidos (velocidade máxima de32,5 nós) e possuir grande autonomia (cerca de 10.000 milhas marítimas).
Enquanto os cruzadores pesados tinham como armamento principal canhões de 203 mm (8”), o Saint Louis era equipado com canhões menores, de 152 mm (47 calibres), entretanto enquanto o primeiro possuía apenas 8 canhões, o cruzador leve estava armado com 15 canhões em cinco torres triplas.Esses cruzadores leves foram classificados como Classe Brooklyn, e dos nove desta série, o Saint Louis foi o oitavo.
Devido a algumas modernizações introduzidas na propulsão, no armamento e na superestrutura em comparação com os anteriores, inicia uma subclasse, que foram também introduzidos no derradeiro da classe, o Helena (CL-50).
Na 2ª Guerra Mundial
Assim que se iniciou o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, o Saint Louis que estava lá ancorado, liga suas caldeiras para sair do porto. Num intervalo de menos de uma hora, suas baterias antiaéreas derrubaram três aviões japoneses e, às 09:31hs, consegue sair do porto pelo canal sul da base.
Durante o ano seguinte participou escoltando comboios transportando tropas para atacar as Ilhas Gilbert e Marshall, e na flotilha para atacar as Ilhas Kiska, nas Aleutas.
Na madrugada de13 de julho de 1943 enquanto participava ativamente na campanha das ilhas Salomão, durante a batalha de Kolombangara foi atingido por um torpedo na proa, disparado por um contratorpedeiro japonês. O impacto foi tão grande que arrancou uma das ancoras do cruzador, entortando e deslocando para bombordo o eixo da proa em mais de 30 cm, sendo enviado de volta para os Estados Unidos, escoltado pelo navio de reparos USS Vestal (AR-4) para ser reparado.
Aproveitando o período de reparos, os canhões antiaéreos de 28 mm são substituídos por Bofors de 40 mm, voltando à ação no mês de novembro e incorporado novamente nos combates no front das Ilhas Salomão.
No final da tarde de 14 de fevereiro de 1944, a flotilha foi atacada por seis aviões bombardeiros de picada Aichi D3A “Val”, sendo que dois deles voam em sua direção. Um deles lança três bombas, mas não consegue acertar o alvo, entretanto o segundo acerta uma das bombas, atingindo o depósito de munições de uma das torres de canhões Bofors de 40 mm, matando 23 tripulantes e ferindo outras vinte.
Além da torre dos canhões antiaéreos, a bomba avariou também o sistema de ventilação, o sistema de comunicação interna, além de destruir os dois hidroaviões Curtiss SOC Seagull na popa.
Os cruzadores leves das classes Brooklyn e subclasse Saint Louis,quando construídos não possuíam radar, e estavam equipados com quatro pequenos hidroaviões abrigados num hangar na popa utilizados para voos de reconhecimento e calibragem de tiros dos canhões de 152 mm (em 1941, o Saint Louis foi equipado com radares para detectar alvos aéreos e de superfície).
Devido à avaria, teve que reduzir a velocidade para 18 nós, e no dia seguinte sofreu um novo ataque aéreo, mas continuou ileso permanecendo por três meses na Baía de Purvis, nas Ilhas Salomão para ser reparado.
Em junho foi deslocado às Ilhas Marshall, participando nas operações de desembarque de tropas nas Ilhas Marianas, Palau e Saipan.
Em 27 de novembro quando patrulhava o Golfo de Leyte, o Japão inicia um contra-ataque e o Saint Louis foi duramente atacado por aviões kamikaze.
Durante o primeiro ataque de 14 aviões, durante o período da manhã, ele escapa ileso, mas,às 11:30hs,ocorre um segundo ataque com dez aviões D3A “Val” e um deles atinge as torres antiaéreas de nº7 a 10 e o hangar dos hidroaviões de reconhecimento. Alguns minutos depois um segundo avião derrubado em chamas por pouco não atinge o Saint Louis, indo cair a apenas 100 metros do navio.
Um terceiro ataque kamikaze surgiu menos de 20 minutos depois, dois deles visando o Saint Louis, porém, sua artilharia antiaérea consegue derrubar um deles, mas o segundo atinge o casco de bombordo, provocando vários furos, começando a inundar o navio, e um terceiro avião foi derrubado pela artilharia caindo no mar a 370 metros do navio. Um grupo de aviões torpedeiros efetua um outro ataque, mas o Saint Louis bravamente consegue desviar dos torpedos.
Perto das 13:00hs os danos tinham sido controlados, resultando em 15 tripulantes mortos, 43 feridos e um desaparecido, obrigando o navio voltar para os Estados Unidos para reparos.
De volta ao front em março do ano seguinte, participou na força tarefa de ataque ao Japão, escoltando os porta-aviões Langley, Intrepid e Yorktown e couraçados Missouri, New Jersey e Wisconsin, e participou no ataque a Okinawa, enfrentando ataques de aviões kamikaze, porem permanecendo incólume desta vez.
Após a rendição do Japão voltou aos Estados Unidos, em junho de 1946, sendo desativado e permanecendo armazenado em League Island, no rio Delaware.
No Pós Guerra
Com o término da guerra, os Estados Unidos iniciam programas de ajuda militar aos países amigos, oferecendo reequipar suas forças militares com material excedente de guerra.
Os equipamentos a serem cedidos foram padronizados e variavam também de acordo com a região global a ser destinada e quanto à quantidade, os equipamentos oferecidos aos países sul-americanos, seguiam o critério de isonomia entre países a fim de evitar,segundo a política americana, “uma corrida armamentista”.
Assim, dentre os equipamentos navais ofertados incluíam contratorpedeiros da classe Buckley, Cannon e Fletcher, submarinos da classe Gato, Balao e Tench, e cruzadores da classe Brooklyn.
Em 1951, dos nove cruzadores da classe Brooklyn e subclasse Saint Louis, seis foram distribuídos para três países sul-americanos, ao preço de U$2 milhões cada, um valor simbólico, se compararmos o custo de construção que foi de pelo menos U$15 milhões cada. Sendo estes:
- Argentina
- ARA General Belgrano (C-4), ex-USS Phoenix (CL-46) *;
- ARA 9 de Julio (C-5), ex-USS Boise (CL-47);
- Brasil
- Barroso (C-11), ex-USS Philadelphia (CL-41);
- Tamandaré (C-12), ex-USS Saint Louis (CL-49) ;
- Chile
- O’Higgins (CL-02), ex-USS Brooklyn (CL-40); e
- Capitán Prat (CL-03), ex-USS Nashville (CL-43).
*O cruzador argentino ARA General Belgrano, quando incorporado, recebeu originalmente a denominação “ARA 17 de Octubre”, em homenagem ao “Dia de La Lealtad”, data comemorada pelo peronismo, sendo renomeado General Belgrano após a queda de Perón na “Revolución Libertadora”, em 1955.
A serviço da Marinha do Brasil
Em outubro de 1955, após a eleição presidencial que elegeu Juscelino Kubitschek de Oliveira, a ala “antigetulista” tentou invalidar a eleição, sendo um deles o presidente Interino Carlos Luz, e o ministro da Guerra, o então general Henrique Teixeira Lott desencadeou um movimento militar cercando o Palácio do Catete com tropas do Exército e declarando impedimento ao presidente Carlos Luz. Tanto a Marinha como a Força Aérea eram a favor da invalidação da eleição de Juscelino, e Carlos Luz fogem, juntamente com políticos Carlos Lacerda e Prado Kelly, embarcados no cruzador Tamandaré e partiram rumo a São Paulo, onde o governador Jânio Quadros o apoiava.
O ministro da Aeronáutica Eduardo Gomes tinha, inclusive transferindo caças Gloster Meteor da Base Aérea de Santa Cruz (RJ) para a Base Aérea de Cumbica (SP) com o objetivo para contrapor Lott, sob o pretexto de um exercício aéreo em São Paulo.
A ideia inicial era fazer a viagem rumo a São Paulo, a bordo da nau capitânea, o cruzador Barroso, mas este estava inativo para reparos, e acabaram optando pelo Tamandaré. Coincidentemente, este também se encontrava em manutenção, com apenas duas caldeiras em funcionamento, mesmo assim, com velocidade reduzida de cinco nós, partiu rumo a São Paulo.
Quando estava saindo da Baía da Guanabara, o forte de Copacabana e a Fortaleza de Santa Cruz disparam seus canhões com tiros de advertência, tentando impedir o prosseguimento da viagem. O comandante do Tamandaré, o capitão de Mar e Guerra Silvio Heck, ordena municiar os canhões de 152 mm, e as torres triplas são direcionadas contra os dois fortes, entretanto sem a necessidade de revidar, sai em mar aberto para prosseguir a viagem.
Durante o percurso, o governador Jânio Quadros foi persuadido a não aderir ao movimento, e o navio resolve retornar ao Rio de Janeiro. Entretanto como os canhões estavam municiados, e não era possível retirar os projéteis manualmente, foi realizado um exercício de tiro em alto mar.
Em 1963, durante o episódio conhecido como “A Guerra da Lagosta”, foi designado a participar nas operações para patrulhar as águas brasileiras, entretanto durante a viagem rumo ao nordeste teve problemas na propulsão e foi rebocado até Salvador (BA).
Durante a sua carreira na Marinha Brasileira, foram feitas algumas modernizações, tais como a instalação de repetidores de radares mais modernos, e a implantação de um heliporto na popa, sendo retiradas as duas catapultas que operavam os hidroaviões. O modelo de helicóptero mais empregado foi o Westland Wasp e, para dar mais segurança às suas operações, os canhões de 152 mm da torre nº5 ficavam voltados para um dos lados.
Após servir por 24 anos e navegar 216.096,7 milhas, o Tamandaré foi dado baixa em 28 de junho de 1976, se tornando o último cruzador a servir na Marinha do Brasil, visto que o Barroso tinha sido desativado três anos antes.
Durante o ano de 1978, por pouco não ocorreu um conflito entre o Chile e a Argentina pela disputa de ilhas no Canal de Beagle, no extremo sul do continente sul-americano. Curiosamente a Argentina foi apoiada pelo Peru e o Chile pelo Brasil.
O Chile enfrentava uma escassez de equipamento militar, pois estava sob um embargo de fornecimento de material bélico imposto pelo presidente norte-americano Jimmy Carter.
A Marinha do Chile ainda operava o cruzador Capitán Prat e necessitava urgentemente de componentes de reposição, procurou ajuda no Brasil, que fornecia equipamentos militares ao Chile desde o início da década de 70, pois, o Tamandaré, mesmo descarregado ainda estava ancorado no Rio de Janeiro e aguardando destino.
Contrariando cláusulas do contrato de sessão do Tamandaré pelos EUA ao Brasil, onde o destino final seria o Brasil, não podendo ser repassado sem autorização prévia para um terceiro país (cláusula “end user”), o Brasil vende peças sobressalentes e equipamentos canibalizados do Tamandaré para o Chile, possibilitando manter o Prat em atividade até 1982.
Em 1980 o casco do Tamandaré foi arrematado num leilão, e rebocado com destino a Formosa para ser desmontado, porém, no caminho, começou a adernar, e acaba afundando perto da África do Sul.
Por mais irônico que possa parecer,para um navio com uma história tão gloriosa como o “Lucky Lou”, o mar foi o local de descanso definitivo mais apropriado.
Referências
- ADCOCK, Al.US Light Cruisers in Action. Carrolton, USA: SquadronSignalPublications Inc, 1999
- Associación Amigos delCrucero General Belgrano.El Crucero ARA Belgrano, Su vida, Su Historia 1938/1951/1982/2007. Buenos Aires, Argentina, 2007
- BURZACO, Ricardo.Acorazados Y Cruceros de la Armada Argentina 1881-1982, Buenos Aires, Argentina: Eugenio B. Ediciones, 1997
- CLAVEL, Patricia Aracibia; SERRANO, Francisco Bulnes.La Escuadra em Acción – 1978: El Conflicto Chile-Argentina A Través de Sus Protagonistas. Santiago, Chile: MavalLtda, 2005
- CONWAY’S. All The World’s Fighting Ships 1947-1995. Londres, UK: Conway Maritime Press, 1995
- Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. Tamandaré, Cruzador. https://www.marinha.mil.br/dphdm/sites/www.marinha.mil.br.dphdm/files/TamandareCruzador1952-1976.pdf, consultado em janeiro de 2023
- JANE’S Yearbooks. Jane’s Fighting Ships 1940/41/42/43/44/45. Londres, UK: Butler & Tanner Ltd, 1989
- JANE’S Yearbooks. Jane’s Fighting Ships 1967-68. Nova York, USA: McGraw- Hill Book Company, 1967
- JANE’S Yearbooks. Jane’s Fighting Ships 1974-75. Londres, UK: Macdonald and Jane’s Publishers Limited, 1975
(*) Hélio Higuchi, nascido em São Paulo, no ano de 1953, e tendo consolidado sua carreira profissional no setor de hotelaria, sendo graduado em Arquitetura e Urbanismo, com pós-graduação em Marketing, é considerado um dos maiores especialistas em história militar da América Latina, com trabalhos nas mais importantes publicações do planeta.
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Respostas de 6
Bom demais ler sobre a história desses “monstros de aço” que lutaram no Mar
A maior tristeza de tudo isso é a incapacidade da Marinha do Brasil de fazer história. História não é só feita com ações de alguns mas também mantendo viva a história que já existe. Porque não transformar esse navio tão condecorado em museu? Seria um ponto de interesse tanto para Brasileiros como para Americanos. Ainda bem que as pirâmides estão longe do Brasil porque se aí estivessem a muito tempo teriam virado pedra de sarjeta.
Bela matéria, poderia ter mais com temas de História como essa. Obrigado pelo trabalho.
De fato, o período entre o início do século XX e o final da 2GM foram gloriosos para as marinhas. Uma infinidade de navios projetados, construídos, testados, afundados e afins…
que bela e triste história.
Parabéns pelo artigo. O ex-cruzador Tamandaré e um navio icônico que serviu com distinção a duas nações.
A Marinha do Brasil estudou a possibilidade de modificar e estender a vida útil do navio. As modificações contemplariam a remoção das torres da popa e a ampliação do hangar e do convoo. A propulsão seria trocada de vapor para motores diesel.
O Tamandaré ficaria equivalente aos cruzadores de helicópteros HMS Blake e HMS Tiger que em 1964 tiveram as torres de 6’’ e 3’’ da popa substituídas por um hangar e convés de voo capazes de operar quatro helicópteros Wessex ou Sea King.
A associação de ex-tripulantes do St Louis chegou a oferecer US$ 750.000 para comprar o cruzador, visando preserva-lo nos USA. Infelizmente o navio tinha sido arrematadoo em leilão no dia 5 de agosto de 1980 pelo valor de US$ 1.100.000, pela empresa Superwinton Enterprises Inc., com sede no Panamá que declarou que o destino do mesmo seria o porto de Hong Kong.
No entanto a empresa proprietária contratou o reboque para a ilha de Formosa, onde seria então feito o desmonte. Na viagem para Asia no dia 23 de agosto ao se aproximar do sul da África o rebocador Royal, de bandeira filipina, encontrou mau tempo, sendo que casco do cruzador apresentou uma banda, que foi se acentuando apesar do reboque seguir em boa velocidade. Com a melhoria nas condições do tempo o navio foi visitado por uma equipe de manutenção que constatou haver muita água no segundo convés. Apesar das difíceis condições de trabalho foram realizados alguns reparos. Os responsáveis pelo reboque decidiram seguir para Capetown, onde poderiam ser realizados reparos de maior complexidade. Entretanto na noite de 24 de agosto de 1980, por volta das 22:22 hs, na posição de 38º’48’s e 0lº24’w, o valente cruzador começou a submergir, sendo então largado o cabo de reboque. O Tamandaré, ex-USS Saint Louis, glorioso e invicto , afundou no Atlântico, repousando para sempre no tumulo dos grandes guerreiros as profundezas do mar.
Ótima matéria!
Só uma pequena correção, impacto do torpedo deslocou a proa em 3,82 metros (12 pés e 7 polegadas)