Processo de tomada de decisão em incidente crítico – Parte 1

Como se formam os pensamentos e as decisões em momentos de caos

Por Valmor Saraiva Racorti e Wellington Reis*

Imagine a seguinte cena: numa noite calma durante o serviço num posto policial, na cidade de São Paulo, dois policiais trabalham ouvindo a rede de rádio e atendendo ao público que possa precisar de ajuda em qualquer horário. Até aquele momento o serviço se encontrava tranquilo, apenas com atendimentos de ocorrências rotineiras e costumeiras. Mas em determinado momento da noite, os policiais observam uma pessoa parando a moto defronte ao posto policial, e descendo dela e sem retirar o capacete, adentra ao ambiente, saca uma pistola e aponta para o policial.

A partir daquele momento, qual a decisão a tomar? Como ocorre o processo de decisão que resultará na morte do indivíduo, na morte do policial ou na solução do incidente grave apontado? Quais os fatores que levam a essa decisão? Qual é o tempo que os policiais têm para tomar essa decisão?

No caso em questão, os policiais, por entenderem que se tratava de uma agressão ou ataque a base, efetuaram os disparos em defesa própria resultando na morte do indivíduo. Em segundos, foram obrigados a decidir qual ação tomar. Posteriormente, após o incidente ter sido resolvido e no momento de investigação do ocorrido, foi encontrada uma carta daquele indivíduo relatando os problemas que enfrentava no seu dia-a-dia e desistindo da vida e buscando pelo suicídio. Contudo, como não tinha coragem para tomar essa atitude, procurou outros meios para atingir seu objetivo. Sua ação é classificada como um suicídio por policial – suicide by cop, no termo original em inglês.

Esse termo já foi abordado em outro artigo por um dos autores e é de conhecimento geral de profissionais que lidam com os aspectos psicológicos que envolvem esse tipo de evento, tal como os policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), que atuam diretamente em incidentes críticos com suicidas armados.

O conhecimento de tal conduta e o histórico de incidentes em que houve a identificação desse objetivo suicida permitem uma visão diferenciada do que ocorreu. A experiência profissional dos militares envolvidos poderia gerar uma análise e uma resposta diferente, com outro desfecho.

Então, significa dizer que os policiais envolvidos erraram na sua decisão? Que outros finais poderiam ter acontecidos?

A resposta é não e sim, respectivamente. Não houve um erro técnico ou tático dos policiais (fora do sentido legal, jurídico) mas sim uma decisão tomada em segundos com base nas suas informações e experiências profissionais e pessoais existentes. E sim, poderiam ocorrer outros desfechos, baseados nos mesmos atributos citados. Aliás, em muitos outros que são os responsáveis pelo processo de tomada de decisão, como veremos adiante.

Cabe a lembrança de que essa é apenas uma ação policial em que os envolvidos possuem segundos para tomar uma decisão, que pode resultar na morte de algum dos envolvidos – agressor, policial ou vítima civil – ao passo que, para os estudiosos ou aplicadores do direito, terão todo o tempo para analisar o fato ocorrido, seus erros e acertos, à luz do direito ou da análise das Técnicas, Táticas e Procedimentos (TTP) da força policial envolvida, incluindo o acesso aos seus manuais e protocolos de atendimento de ocorrências e incidentes policiais.

O processo de tomada de decisão em incidentes ou em momentos críticos difere do processo de tomada de decisão rotineiro. No geral, o processo decisório é amplamente estudado por forças de segurança, acadêmicos e executivos, trabalhando com ferramentas eficientes, tais como análises de cenários, jogos de guerra, brainstorm, Ishikawa entre outros de eficiência comprovada. Entretanto, todas essas ferramentas, para serem efetivas, necessitam, em maior ou menor grau, dos seguintes elementos:

  • Informações claras;
  • Tempo para análise.

Sem que esses dois elementos estejam presentes, as ferramentas tornam-se ineficazes ou deficientes, gerando conclusões erradas ou sem resultados práticos. As ferramentas decisórias têm o seu valor, principalmente para a tomada de decisões estratégicas com a presença dos dois elementos.

A grande dificuldade dos operadores de segurança pública e outros respondedores de emergências é que os dois fatores, normalmente, são inexistentes nos momentos iniciais de um incidente. Na realidade ocorre o oposto, pois há uma compressão de tempo que obrigam a implementação de atitudes imediatas que, se não tomadas, podem aumentar exponencialmente os danos aos envolvidos. Quanto às informações, normalmente são inexistentes ou contraditórias, que se utilizadas tendem a gerar um quadro situacional diverso daquele existente.

Dessa forma, o processo decisório comumente aplicado torna-se impossível. Contudo, a decisão deve ser tomada.

Charles Sid Heal, doutrinador norte-americano, em seu artigo sobre tomada de decisões, o qual será alvo deste artigo, descreve o “processo de tomada de decisões em crises como o processo de alcançar uma conclusão relevante para resolver uma situação durante um período de instabilidade e perigo” (HEAL, 2014).

Neurociência e construção de pensamentos

O cérebro humano tem se desenvolvido durante a história, adquirindo mecanismos de defesas e formas de se criar conexões que trouxeram a espécie até o momento atual. Embora sejamos orgulhosos de todos os avanços éticos e científicos, sendo capazes de raciocinar e construir maravilhas com a capacidade intelectual humana, parte do cérebro ainda é voltada para a sobrevivência.

Dentre os modelos mais utilizados pela neurociência, o modelo do cérebro trino, descrito pelo Dr. Paul Maclean, é o mais aceito e permite um entendimento provisório da forma que se criam os pensamentos, sendo assim, de como se formam as decisões. Para o Dr. Maclean (1990), de forma simplificada, o cérebro humano divide-se em três partes: o cérebro lógico ou racional (neomammalian formation), o cérebro mamífero ou límbico (paleomammalian formation) e o cérebro reptiliano ou R-Complex (protoreptilian formation).

O cérebro lógico ou racional é o mais recente na evolução, constituído pelo neocórtex, responsável pelos pensamentos abstratos e pelas ideias que geram as inovações e construções. O cérebro mamífero controla o comportamento emocional, responsável pelos sentimentos mais elevados como apego, cuidado, medo etc. Por fim, o cérebro reptiliano, responsável pelos reflexos mais simples e sensações mais primárias, como frio, calor, dor etc.

Dave Grossman e Loren W. Christensen (2007) descrevem que em uma situação de grande estresse, o corpo entra em uma condição que todo o processo cognitivo se deteriora, ou seja, deixa-se de pensar, podendo fugir ou lutar, havendo um sequestro do cérebro racional pelo cérebro mamífero, reduzindo as funções periféricas, assim como a capacidade cognitiva, resultando no foco do cérebro no problema apresentado, o que gera a redução da atenção periférica e desfocada, a redução dos sentidos – tato, visão e audição – entre outros aspectos fisiológicos.

Na mesma linha do Dr. MacLean, Charles Sid Heal (2018) trata da forma de construção do processo decisório e a ação cerebral na tomada de decisões, dando ênfase na amigdala e no neocórtex para a análise e o processo de tomada de decisão em crises, referindo-se à amígdala como o centro do medo no cérebro, logo, responsável pelos sentimentos, e ao neocórtex como a parte “pensante” do cérebro.

A mesma reação relatada por Grossman e Christensen no caso de uma ameaça à vida é descrita por Heal, sendo chamada por este como o “sequestro da amígdala”, o efeito que esta assume o controle e impede o uso dos recursos do neocórtex, ou seja, atua de forma instintiva no lugar de observar todos os aspectos decisórios, gerando, da mesma forma, uma perda de visão periférica e a capacidade de ouvir ou analisar outros fatores (HEAL, 2018).

É possível ser dito que a construção do pensamento ocorre no neocórtex e na amígdala, ou conforme os termos do Dr. Maclean, no cérebro lógico e no cérebro límbico, sendo o cérebro reptiliano responsável por manter a máquina humana funcionando, regulando temperatura, pressão, batimentos cardíacos, entre outras funções.

No neocórtex, as ideias são construídas e têm-se acesso a informações mais detalhadas e organizadas. No cérebro límbico, os sentimentos são mais presentes, agem de forma instintiva pensando em reações e formas rápidas de se entregar uma informação ou resolver um problema.

Para o Dr. Daniel Kahneman (2012), a construção do pensamento ocorre em dois sistemas diversos:

O Sistema 1 opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário.

O Sistema 2 aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. As operações do Sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração.

Pode-se inferir, mesmo sem que sejam feitas menções quanto a qual parte do cérebro é responsável por cada sistema, que tangenciam o mesmo assunto, pois o Sistema 1 descrito pelo Dr. Kahneman atua com as formas rápidas de pensamento, sem que sejam necessárias buscar informações mais precisas para uma decisão ou ação. No entanto, está sempre atento ao que acontece dentro e fora do cérebro, buscando interpretar situações e avaliando constantemente o ambiente, gerando um julgamento intuitivo (KAHNEMAN, 2012).

O Sistema 1 opera de modo diferente. Ele monitora continuamente o que está acontecendo fora e dentro da mente, e gera continuamente avaliações dos vários aspectos da situação, sem intenção específica e com pouco ou nenhum esforço. Essas avaliações básicas (basic assessments) desempenham importante papel no julgamento intuitivo, pois elas facilmente entram no lugar de questões mais difíceis (…) (KAHNEMAN, 2012)

O pensamento é formado de maneira detalhada e complexa num momento de tranquilidade ou quando exige uma resposta complexa para o assunto apresentado, sendo necessário tempo para análise e escolha das melhores informações para o que fora apresentado de forma instintiva em situações de elevado estresse e risco à vida, ou em questões simples, rotineiras e habituais.

(*) Os autores

Valmor Saraiva Racorti, tenente-coronel da PMESP, realizou o Curso Preparatório de Formação de Oficiais em 1990-1991. Graduado em Direito pela UNISUL, é bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública e possui mestrados em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública e Ciências Policiais e Segurança Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança “Cel PM Nelson Freire Terra”. Foi comandante de Pelotão ROTA no 1º BPChq de 1994 a 2006, Chefe Operações do COPOM em 2006, Oficial de Segurança e Ajudante de Ordens do Governador do Estado de 2007 a 2014, Comandante de Companhia ROTA no 1º BPChq de 2014 a 2016 e Comandante do GATE de 2016 a 2019. Com atuação em mais de 500 incidentes críticos, atualmente comanda o Batalhão de Operações Especiais, que compreende o GATE e o COE.

Wellington Reis é capitão da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), atuou nas rebeliões ocorridas em 2006 no Estado de São Paulo, pelo 3º Batalhão de Polícia de Choque, atuou no Grupo de Ações Táticas Especiais (G.A.T.E.) em ações de retomada de reféns e contrabombas e, atualmente, lotado no Centro de Material Bélico da PMESP. Bacharel em direito e pós graduado em Administração pelo Insper. Pesquisador acerca de gerenciamento de incidentes, ações táticas especiais e armamento e tiro.

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Comentários

3 respostas

  1. Excelente artigo, tomada de decisão em meio ao caos, requer uma complexidade grande de fatores a serem considerados, resposta rápida para salvar vidas.

  2. Parabéns. Só quem já esteve sob pressão entende isso com profundidade.

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