Emprego de carros de combate no conflito da Síria

O uso de tropa CC em combates em áreas urbanizadas

 

Adriano Santiago Garcia (*)

 As imagens geradas pelos meios de mídia de comunicação, televisivo e “on-line”, de cidades Sírias em escombros com uma movimentação de veículos blindados nas ruas que a cada disparo levantam nuvens de poeira e transportam soldados para o núcleo dos conflitos consubstanciam as características de poder de fogo, flexibilidade e proteção blindada, core dos conflitos das “bestas de aço”.

O fenômeno geopolítico chamado de “Primavera Árabe” marcou o levante contra governos de países no Norte da África e Oriente Médio contra regimes estabelecidos, alguns, desde época da Guerra Fria. Em 2011, a Síria evoluiu rapidamente de um quadro de revolta local pacífica para um nível de conflito interno geral, tendo o grupo rebelde FSA (“Free Syrian Army”) como força oponente ao governo de Damasco, e o Exército Sírio (SAA, “Syrian Arab Army”) foi despachado com firme expressão do poder militar tendo suas forças blindadas a frente, de maneira a sitiar as localidades revoltosas com vias a sufocar o movimento.

A expectativa do Governo era de que o uso da força pudesse diminuir o ímpeto da revolta, contudo, os Comandantes Sírios não observaram recomendações do Livro “A Arte da Guerra”, no qual Sun Tzu instrui evitar engajamento em combates urbanos e operações de sítio. As superpotências militares, Estados Unidos da America (EUA) e Rússia, se posicionam em lados opostos do conflito, com apoio em material e treinamento de pessoal e até com emprego de tropas em alguns períodos do conflito.

Turquia, Iran e Líbano também tomaram partido, por ligações ideológicas ou políticas. Fato que agravou o quadro de instabilidade local, permitindo que os dois Exércitos Sírios, SAA e FSA, entrem em choque direto por controle de locais, instalações, rotas de suprimento, etc.

Figura 01 – Diagrama de Alianças e enfrentamentos no conflito sírio (Fonte Wikipedia)

O emprego de tropas blindadas em Guerras Regulares e Irregulares Urbanas é normalmente lembrado por custosas Campanhas como Stalingrado (1942) e Grozny (1995), até advogado, pelos mais exaltados, da inutilidade da couraça nas cidades. Contudo, segundo Reese (2006), as cidades precisam ser conquistadas por sua importância política, econômica, cultural, entre outras, se tornando, muitas das vezes, o centro de gravidade (CG) das operações.

As grandes operações de forças blindadas, dos “tanks Sherman” da 2ª Divisão Blindada na cidade Alemã de Aachen (1944) ao espetacular “raid over Baghdad” da Brigada “Spartan” na operação “Iraq Freedom” (2003), trouxeram à luz a possibilidade e até a necessidade dos engenhos blindados neste tipo de operação, contrariando grandes nomes como, já citado, Sun Tzu e o Coronel Britânico Fuller. No estudo de caso sírio é notória a presença do ambiente VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity), em que os elementos de manobra são diretamente influenciados por todos os elementos do ambiente.

A situação de caos no país foi alimento para o insaciável apetite da imprensa, em mostrar a desgraça e sofrimento humano retratado por massas de refugiados e atos de brutalidade filmados e postado em redes sociais. A doutrina militar é um pujante e vibrante “ente” que, se reinventa pelas experiências vividas ou estudadas de maneira a conceber o melhor preparo e material para as tropas para assim não repetir falhas anteriores. O escopo das seguintes laudas é analisar pontualmente, no tempo e espaço, locais em que as tropas de carros de combate enfrentaram situações de revés e poder assim, fornecer parcela de subsídios para o aumento do arcabouço de dados servindo ao proposito máximo da doutrina.

Figura 02 – FT Bld nas cercanias de Douma

 

FORÇAS ENVOLVIDAS

Exército Sírio (SAA)

O SAA, uma Força com 220.000 militares, de conscrição obrigatória às pessoas do sexo masculino e 18 anos de idade, sendo esta uma grande parcela dos militares disponíveis. Seu material de emprego militar (MEM) é quase na totalidade de origem soviético-russo, fato que também reflete na organização das Forças Terrestres (HOLLIDAY 2013).

Figura 03 – Ordem de Batalha do SAA em 2011 (Fonte The Syrian Army Doctrinal Order Of Battle)

A partir da ordem de batalha se deduz que Damasco contava com 19 Brigadas de Fuzileiros blindados, 22 Brigadas de carros de Combate e mais 11 Regimentos de Operações Especiais. Dentro do SAA há também um componente político, o qual algumas unidades destinam-se, exclusivamente, à guarda de membros ligados ao governo e os comandantes mais leais recebem melhor armamento e suprimento, segundo TRADOC (2016).

Durante os primeiros anos da instabilidade o SAA sofreu duros golpes com grandes perdas de pessoal principalmente e material por deserção, porem, com o recebimento de apoio direto russo em 2015, reequipou e reorganizou tropas e melhorou a instrução. Este apoio teve impacto direto na recuperação de terreno dos rebeldes além de expulsão e prisão de elementos do autoproclamado “Islamic State of Iraq and Syria” (ISIS) ou Estado Islâmico. Este último fato elevou a moral dos militares que atualmente estão suprimindo as forças insurretas.

 

FSA

A FSA teve seu núcleo formado por militares desertores do SAA após as repreensões, por parte do governo a protestos, nas cidades de Deera e Homs, em fins de 2011, principalmente por ações de busca a insurgentes dentro de mesquitas (LISTER 2016). A partir de 2012 essa Força passa a atuar em ataques coordenados e até fins de 2013 domina maior parte Oeste do país e importantes cidades como al-Raqqa além de pontos de Homs, Aleppo e até da capital Damasco.

Sua estrutura de Comando possui um Comando Conjunto Revolucionário secundado por um Conselho de Lideres e essa estrutura se liga aos Chefes das Milícias de cada cidade diretamente. Seus ataques tem por principal objetivo a ocupação de aeródromos e aeroportos de maneira a negar que a Força Aérea utilize destes locais para surtidas e ataques as tropas revolucionárias e em segundo plano destruir os meios aéreos e instalações de busca e detecção (O’BAGY 2013).

Por se fundir entre a população civil o FSA executa ações surpresa de ataques em massa a diversos pontos ou até umas cidades diferentes, simultânea ou isoladamente com o canhão sem recuo (CSR) RPG e o míssil TOW como armas principais.

 

Figura 04 – Apoio ao FSA em Aleppo e símbolo adotado pela FSA

 

Outros Atores

Os diversos interesses envolvidos nos mais variados campos, além-militar, provocou o engajamento de outras Forças militares nacionais, dissidência nas milícias ou organizações e grupos terroristas.

Os atritos entre as Forças Sírias causaram um enfraquecimento mutuo e deu espaço a uma ocupação de territórios e material militar capturado ou salvado pelo ISIS, que submeteu áreas e cidades ao seu jugo por determinados períodos, e, temendo o litígio na sua fronteira sul e a incapacidade de Damasco de findar tal situação, o governo da Turquia decide ocupar uma porção fronteiriça de forma a garantir uma zona para salvaguardar os interesses na região.

Além disso, rachas internos no FSA, militantes curdos da região Síria e do norte do Iraque, se organizam e se apossam de MEM se engajando na luta conturbando um ambiente já em crise, e grupos já existentes na região como o Hesbollah, do Líbano, também tornaram colaboradores de determinados partidos com fornecimento de material e conhecimento.

 

PRINCIPAIS BATALHAS

Aleppo

A região de Aleppo é testemunha ocular da história militar, pois seus arredores testemunharam a perseguição de Alexandre da Macedônia ao Rei Persa Dário e é ainda hoje palco de disputas por controle de seus muros. Em agosto 2012, o SAA realiza a primeira incursão para retomar a cidade dos rebeldes e mesmo tendo maior número de combatentes e armas, os leais ao governo controlam apenas 1/3 dos bairros e um eixo principal de suprimento, segundo KILCULLEN (2014).

As tropas do FSA contam com uma grande massa de desertores que operam muitas das vezes de maneira irregular, em solo nativo ou conhecido, fator que os torna profundos conhecedores da cidade, e estes, principalmente de unidades Bld, foram empregados em equipes AC, fator que agrega o conhecimento do pontos fracos dos meios de combate e das rotinas e procedimentos do SAA (TRADOC, 2016).

Em fins de setembro as perdas em blindados de Damasco giram em torno de 40 (quarenta) viaturas blindadas de combate (VBC) tipo CC, de transporte de fuzileiros (VBTP) e de combate de fuzileiros (VBCFuz). Em sua grande maioria, tais perdas não ocorrem durante os enfrentamentos, mas em ações isoladas, e cresceram, e muito, desde o último trimestre de 2012, tanto nos embates entre governo e rebeldes, quanto da conquista quase que total da cidade pelo ISIS.

Figura 05 – CC T-72 abatido durante ação isolada

Os embates pelo controle da cidade superavam a marca de 350 (trezentos e cinquenta) blindados  destruídos, em sua maioria do Governo que ainda resiste, mas também são contabilizados veículos da Turquia e Rebeldes Curdos, ficando evidente que uma forme disciplina militar e programas de treinamento, em aspectos básicos como camuflagem ou nas ações de defesa anticarro são motivos do insucesso da atuação do SAA, e estas lições fornecem bons subsídios para adaptar as futuras doutrinas operacionais das tropas blindadas pelo mundo, incluindo a brasileira.

 

Al-Bab

A pequena cidade de Al-Bab foi ocupada, no segundo semestre de 2016, como parte da ocupação “Euphrates Shield” lançada pela Turquia, com fins de estabilizar uma faixa no interior da Síria que, segundo Ankara, havia presença de grupos terroristas (KARTARI).  A área do hospital de Al-Bab, localizada à oeste da cidade, fora do perímetro urbano construído, foi local de ataques em que as tropas Turcas perderam 10 (dez) CC Leopard 2A4 TR, de dezembro de 2016 a março de 2017.

A resistência ante a ocupação da cidade era organizada por remanescentes do ISIS e rebeldes Curdos que sabedores da ineficácia do CSR e RPG não atacaram as forças blindadas no interior da cidade.

Realizando ataques isolados, armados de mísseis AC TOW ou Kornet, os atiradores emboscaram os carros de combate em seus pontos mais vulneráveis, valendo-se dos amplos campos de tiro (TRIEBERT 2017).

É necessário ressaltar que os Leopard 2 enviados ao combate não continham qualquer adição de blindagem ou sistema de proteção, e são as versões mais básicas desta CC em operação nos Exércitos do mundo, similares aos do Chile.

Figura 06- Região do hospital, W de Al-Bab, pontos em azul claro são locais onde os Leopard 2A4 TR foram abatidos (esquerda) e míssil em rota de colisão com Leopard Turco (direita)

Registros turcos também culpam a perda dos carros por dispositivos explosivos improvisados e ataques de morteiros e ainda contabilizam o ataque a um CC M60 SABRA (modernização feita por Israel nos CC M60 Turcos. O M60 SABRA, que também foi atingido por um míssil AC, sofreu sérios danos, mas conseguiu preservar a vida da guarnição atestando a capacidade do reforço de blindagem recebidos na modernização (TRIEBERT 2017).

Os resultados observados tornam evidentes a necessidades de ativação das Companhias AC das Brigadas Blindadas, e a dotação dos pelotões AC nos Batalhões de Infantaria Blindada e Seções de Mísseis AC, existentes nos Regimentos de Carro de Combate, com modernos e flexíveis mísseis capazes de penetrar as couraças e desaparecer no terreno.

 

CONCLUSÕES

O número de quase 800 (oitocentos) CC já constarem como baixas neste conflito são indubitáveis razoes da produção de técnicas, táticas e procedimentos (TTP), derivadas do ocorrido no conflito. O SAA possuía grande Força Blindada em termos numéricos absolutos, contudo o material não passara por qualquer preparação de aumento da proteção físicas das viaturas blindadas, assim como no caso dos Leopard 2 Turcos.

O uso do dispositivo militar regular, ostensivamente, de maneira a conter ou dissipar pontos de tensão interna pode transmitir a mensagem de que o Governo tem sua população como inimiga e gerar o efeito de recrudescimento das revoltas.

Figura 07- CC T-55 nas ruas de Quseir em maio 2013

Os grupos rebeldes obtiveram conhecimentos de emboscada a blindados e treinamento de equipes AC, assim como a sobra de material do conflito do Hesbollah, de origem libanesa, contra Forças de Israel em 2008. Os conhecimentos das rotinas de emprego das forças do SAA e a inteligência, reconhecimento, vigilância e aquisição de alvos (IRVA), que auxiliou a destruição de meios blindados em ações isoladas, e a deficiência do preparo das tropas blindadas no inicio das operações, com grandes perdas, foram fatores que ocasionaram deserção de muitos militares regulares (TRADOC 2016).

Houve uma clara deficiência na proteção contra ataques aéreos, visto o número de CC destruídos em bombardeios e ataque de sistemas aéreos remotamente pilotados (SARP), e nas operações de ataque coordenado e defesa móvel e na execução da proteção dos meios blindados, tanto na integração dos carros com tropas de fuzileiros e de defesa antiaérea, que também contribuíram para a perda de material blindados nas ações.

A situação de perdas de CC na Síria foi similar a aprendida pelos Russos nas incursões na Chechênia e da Sérvia durante o desmantelamento do Ex-Estado da Iugoslávia. A preparação específica e extensa para ações em ambientes urbanos com tropas de carros de combate, aliada a equipes de combate capazes de neutralização de caçadores AC somadas a grupos de reconhecimento com grande mobilidade e misses dotados de grande flexibilidade se aparentam em consistir em um trinômio de sucesso neste tipo de ambiente.

O conhecimento é ainda ferramenta de poder para salvaguardar vidas e evitar desastres militares como os princípios da estratégia de guerra ditados por VON CLAUSEWITZ, traduzidos por GATZKE (1942): “destruir e conquistar o poder de combate do inimigo sem perder a opinião pública”.

(*) Adriano Santiago Garcia é Capitão de Cavalaria (AMAN/2009 e EsAO/2019), possui cursos de Especialização na Operação e Instrução da VBCCC Leopard 1A5 BR e o Curso de Instrutor Avançado de Tiro de Carros de Combate. Atualmente está em movimentação, por término de Curso de Aperfeiçoamento, para o 5º Regimento de Cavalaria Mecanizado Quaraí-RS ([email protected]).

 

REFERÊNCIAS

BAGY, O Elizabeth. The Free Syrian Army. Middle East Security Report 9, 2013.

BRASIL. Exército. Manual de Fundamentos. EB70-MC-10.107. Inteligência Militar Terrestre 2. ed. Brasília, 2015.

_____. Exército. Manual de Campanha. EB70-MC-10.208. Proteção 1. ed. Brasília, 2015.

_____. Exército. Manual de Campanha. EB70-MC-10.223. Operações 5. ed. Brasília, 2017.

_____. Ministério da Defesa. MD 33-M-02: Manual de Abreviaturas, Siglas, Símbolos e Convenções Cartográficas das Forças Armadas. 1. ed. Brasília, DF, 2008.

GATZKE, W Hans. Principles of War: Carl Von Clausewitz. The Military Service Publishing Company, 1942.

GOTT, D Kendall. Breaking the Mold Tanks in the Cities. Combat Studies Institute Press Fort Leavenworth, 2006.

HOLLIDAY, Joseph. The Syrian Army Doctrinal Battle Order. Institute for The Study of War, 2013.

KARTARY, K. Operation Euphrates Shield: Brief Overview. Disponível em  https://www.turkheritage.org/en/publications/factsheets/issue-briefs/operation-euphrates-shield-a-brief-overview–2852/

KILCULLEN, David. Mapping the Conflict in Syria, Aleppo. Caerus, 2014.

LISTER, Charles. The Free Syrian Army: A decentralized insurgent brand. Center for Middle East Policy, 2016.

ROBERTSON, G William. YATES. A Lawrence. Block by Block. General Staff College Press Fort Leavenworth, 2003.

TRIEBERT, Christiaan. The Battle for Al-Bab: Verifying Euphrates Shield Vehicle Losses. Disponível em https://www.bellingcat.com/news/mena/2017/02/12/battle-al-bab-verifying-turkish-military-vehicle-losses/

TZU, Sun. A Arte da Guerra. L&PM Editores, 2000.

USA. TRADOC. Threat Tactics Reports: Syria. 1. ed. Fort Eustis, VA, 2016.

___. TRADOC. Threat Tactics Reports: Iraq and Syria Update. 1. ed. Fort Eustis, VA, 2017.

___. Army HET. Who first originated the term VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity. Disponível em https://www. http://usawc.libanswers.com/faq/84869/

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Comentários

Uma resposta

  1. Olhando os diversos vídeos de carros de combate na Síria disponíveis, além dos T-72 e T-55 é notória a grande quantidade de T-62.
    Pelo que pesquisei esse país foi o segundo maior cliente da URSS desse carro, com 1000 carros, atrás apenas do Egito que comprou 300 unidades à mais.

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