Sem dinheiro, sem parceria – A vulnerabilidade estratégica da Venezuela

A aquisição de equipamentos militares prontos para uso, conhecidos como “off the shelf”, é frequentemente apresentada como uma solução pragmática e financeiramente eficiente para a modernização das Forças Armadas. No entanto, essa abordagem, embora sedutora em sua agilidade aparente, oculta uma vulnerabilidade estrutural que, em vez de consolidar a soberania nacional, pode corroê-la de forma silenciosa e profunda. O caso venezuelano ilustra com clareza essa armadilha: a segurança de um Estado não se constrói por meio de compras pontuais, mas sim pela edificação contínua de capacidades autônomas, sustentadas por uma base industrial sólida e por parcerias estratégicas de longo prazo.

A máxima popular “quando acaba o dinheiro, acaba o amor” adquire, nesse contexto, uma ressonância geopolítica perturbadora. Ela revela a natureza essencialmente condicional das alianças internacionais, pautadas por interesses circunstanciais e não por solidariedade genuína, pois a lealdade entre Estados é, em última instância, uma função da utilidade recíproca, e não da afinidade ideológica ou da convergência de valores.

Historicamente, a Venezuela operava com um arsenal predominantemente ocidental, composto por caças F-16 norte-americanos e carros de combate franceses. A partir de 2005, diante do agravamento das tensões com Washington, o então governo de Hugo Chávez promoveu uma inflexão estratégica, buscando diversificar seus fornecedores e reduzir a dependência do Ocidente. Essa reorientação resultou em investimentos de bilhões de dólares em armamentos russos, incluindo caças Sukhoi, helicópteros, fuzis AK e veículos blindados, além de uma aproximação pontual com a China. Contudo, essa transição não erradicou a vulnerabilidade, apenas a deslocou, reconfigurando os riscos e as dependências.

A tentativa de diversificação culminou em um inventário militar fragmentado e logisticamente disfuncional. A Marinha passou a operar navios de origem espanhola, russa e chinesa, enquanto a Força Aérea manteve simultaneamente caças Sukhoi e F-16. Essa heterogeneidade impôs desafios severos à padronização de doutrinas, à interoperabilidade entre sistemas e à manutenção de uma logística eficiente. As sanções internacionais agravaram o quadro, dificultando o acesso a peças de reposição para os equipamentos ocidentais, tornando parte deles inoperantes. Mesmo os sistemas russos, embora relativamente operacionais, permanecem dependentes de um único fornecedor, igualmente sujeito a restrições políticas, o que os torna vulneráveis a interrupções externas.

Em vez de alcançar autonomia, a Venezuela aprofundou o abismo entre seu poder nominal, representado pela lista de ativos militares, e sua capacidade operacional efetiva. A ausência de uma base industrial de Defesa transformou o aparato militar em uma coleção disfuncional de sistemas caros e de eficácia limitada em combate coordenado.

As alianças com Rússia e China, embora tenham oferecido respaldo diplomático em momentos críticos, revelaram-se essencialmente transacionais. Foram firmadas em tempos de bonança, impulsionadas por interesses comerciais e geopolíticos, como a expansão da indústria bélica russa e a busca chinesa por novos mercados. Nenhuma dessas potências demonstrou disposição para assumir compromissos militares diretos em defesa da Venezuela, evidenciando os limites do apoio externo em cenários de alta tensão.

O respaldo ao Palácio de Miraflores permaneceu confinado ao plano diplomático, como se viu no veto russo a resoluções no Conselho de Segurança da ONU e em declarações conjuntas contra ameaças de intervenção. Entretanto, esse apoio não se traduziu em garantias de defesa concreta. A assimetria estratégica entre Caracas e Washington tornou-se evidente diante da capacidade de projeção de força dos Estados Unidos, sustentada pelo Comando Sul (USSOUTHCOM). A mobilização recente de uma força-tarefa naval norte-americana, composta por destroieres e navios de assalto anfíbio, evidenciou a possibilidade real de ações seletivas. A resposta venezuelana, centrada na mobilização de milícias, expôs a escassez de alternativas convencionais e a incapacidade de enfrentar uma força expedicionária de alta tecnologia.

Essa dinâmica revela um princípio fundamental das relações internacionais: o grau de comprometimento de um aliado é diretamente proporcional ao seu próprio interesse estratégico. Quando os recursos escasseiam e o poder de barganha diminui, o apoio simbólico persiste, mas o engajamento militar, de alto custo e risco, é prontamente descartado.

O caso venezuelano oferece um alerta contundente ao Brasil. Para uma nação de dimensões continentais e com uma agenda estratégica multifacetada, a dependência de terceiros para a manutenção de seus sistemas representa uma vulnerabilidade sistêmica de escala incomparavelmente superior. Uma falha logística que compromete um sistema de armas é grave, mas a mesma falha, em um país com responsabilidades regionais e fronteiras extensas, pode inviabilizar operações de paz, missões humanitárias, vigilância territorial e proteção de recursos naturais.

A experiência venezuelana demonstra que autonomia estratégica e soberania tecnológica não são luxos de países desenvolvidos, mas imperativos existenciais para qualquer Estado que aspire a exercer influência regional. A dependência, mesmo de aliados, constitui um ponto de falha crítico, passível de exploração em cenários de tensão geopolítica ou restrição de suprimentos. Ainda assim, parcerias para Pesquisa e Desenvolvimento conjunto permanecem desejáveis, desde que subordinadas a uma estratégia nacional de capacitação e independência.

Em síntese, a vulnerabilidade estratégica é o subproduto direto da terceirização da segurança nacional. A aquisição de equipamentos prontos, embora ágil, perpetua uma dependência crônica que desloca, mas não elimina os riscos. Alianças forjadas por conveniência financeira, em tempos de prosperidade, tendem a se dissolver sob pressão real. A segurança genuína e a autonomia de um país são construídas de dentro para fora, por meio de investimentos contínuos em tecnologia, indústria de defesa e formação de capital humano.

A lição da Venezuela ecoa com clareza. Na arena internacional, vulnerabilidade é sinônimo de exposição, e segurança é sinônimo de autossuficiência. Porque, no fim das contas, e sobretudo na geopolítica, quando acaba o dinheiro, acaba o amor.

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Respostas de 8

  1. Então, venho com uma crítica típica do Século XIX: qual é a solução proposta para o Estado Venezuelano da parte do autor?
    Para o Brasil é a obviedade do desenvolvimento da Base Industrial de Defesa.
    E para a Venezuela, que é um Estado exportador de Petróleo bruto? Desprovida duma base industrial consistente, qual é a solução proposta?
    Não há. Resta ao Estado Venezuelano realizar encomendas junto a China, Rússia e Irã e permanecer em baixo perfil diplomático. Se possível, iniciar a construção dum setor industrial que hoje é incipiente.
    Trabalho para décadas.
    Ou… Capitular.

    1. Esta vulnerabilidade vale não apenas para Venezuela, mas para a toto o sub continente Sul-americano constituído de países de médio porte a pequeno com relativa excessão do Brasil que foge a este padrão… Restando desta forma trabalhar no sentido de 1) fortalecer o perfil de zona de paz da América do Sul e 2) Formular um pacto regional de defesa recíproca similar a OTAN, capaz de representar um efetivo mecanismo de dissuasao regional contra a interferência de potências extra continentais. Fosse dessa forma, provável que no atual momento houvesse uma dezena de submarinos modernos patrulhando as águas jurisdicionais da Venezuela capaz de negar o uso do mar para uma força de desembarque e levando real perigo para o grupo tarefa americano.

    2. Tivesse a Venezuela empregado os vastos recursos que tinha em industrialização (inclusive BID) hoje o Maduro não estaria pedindo por “paz” enquanto segura uma espiga de milho. Serve a lição ao Brasil.

      1. O dinheiro do petróleo da Venezuela sempre foi para uma meia dúzia, enquanto o povo foi sempre mantido na pobreza indigna, sem educação de qualidade, sem moradia, etc. A ascensão de Chaves e depois Maduro refletiu a total revolta da sociedade com o sistema de dominação. Mas os EUA não admitem que ninguém se rebele, impondo seu poderio financeiro e militar, entre outros para massacrar quem se atreva ir contra suas imposições. Só em ouro são 30 bilhões de dólares bloqueados pelos EUA, fora outros ativos expropriados, além da Europa que também fez o mesmo, asfixiando a Venezuela.

  2. Um ótimo artigo. É certeiro ao apontar que a diversidade de fornecedores não representa em essência segurança, e sim o desenvolvimento de tecnologias críticas, por conta própria ou com parceiros devidamente interessados, é que pode faze-lo.

    Não digo que diversificar fornecedores não seja uma tática válida, mas tem de se ter a ciência da possibilidade do fornecedor conversar com potenciais adversários e ter com eles boas relações, o que vai definir o grau de interação e até mesmo o limite daquilo a ser fornecido, além da possibilidade de restrições sobre como ou contra quem o equipamento poderá ser usado (sob pena de se perder o fornecimento).

    As dificuldades relacionadas a operabilidade conjunta são especialmente verdade se levarmos em consideração as tecnologias embarcadas nos equipamentos atuais; um emaranhado de hardware e software que precisam “conversar” perfeitamente entre si (guerra centrada em redes). Ora pois, antes tudo era mecânico, elétrico e hidráulico, e era possível combinar equipamentos diversos sem que isso gerasse muitas implicações operacionais… Se poderia pegar, por exemplo, um caça francês, colocar um motor americano, um radar israelense e “vamu que vamu”! Hoje, não se consegue fazer muito sem auxílio do fabricante.

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