Opinião – Programa VCBR, uma questão geopolítica

Por Mariano Gonzalez Lacroix, editor do Portal Zona Militar (*)

Não há dúvida de que um dos pontos de maior interesse na modernização das Forças Armadas argentinas está nas negociações oficiais para a aquisição do programa VCBR (“Vehículo de Combate Blindado a Rueda”), do Exército Argentino (EA). Talvez pelo impacto midiático, com diferentes artigos veiculados nos meios de comunicação, com um tratamento para dizer o mínimo turbulento e muitas vezes fictícios, ou por ser um item de planejamento de longo prazo e de alto nível, devido à importância que esse tipo de veículo tem nas modernas estruturas militares.

O fato é que esse programa se posiciona como uma instância sólida para modernizar os equipamentos do EA ao mesmo tempo em que oferece a possibilidade de gerar benefícios dentro da indústria de defesa.

O impacto do programa, devido a quantidade de veículos pretendidos, procura ter o seu correlato também numa modernização das estruturas dos diversos fornecedores nacionais, que incorporaria insumos, processos e técnicas que promovessem notavelmente as capacidades industriais nacionais. Não se trata apenas da aquisição, mas de um plano que gira em torno de cem unidades (no mínimo) e que se constituiria como um primeiro grande plano de desenvolvimento industrial militar, como o programa de modernização do TAM (“Tanque Argentino Mediano”), entre outros. Estamos a falar de um volume de produção significativo com um impacto orçamental considerável.

Entendendo esta projeção, com impacto a nível instrumental, econômico e de desenvolvimento, a Argentina tem buscado diferentes alternativas em nível internacional para se associar a um fornecedor que ofereça o melhor produto, estimando a transferência de tecnologia e a possibilidade de manufatura conjunta e tudo sob um plano de financiamento competitivo. Não existe um único grande plano de Defesa Nacional que possa ser executado sem o amparo de planos de pagamentos interanuais ou flexíveis: entende-se que o país não tem um talão de cheques como o dos sauditas.

O projeto VCBR, como tem sido repetidamente reportado, tem diferentes ofertas, e com elas diferentes atores que as promovem, cada um com interesses particulares que não estão vinculados apenas a uma questão comercial, assim sendo, o dossiê e o plano relacionados aos veículos blindados estão atualmente contaminados por questões. Nesse jogo, quatro principais candidatos abordam suas propostas técnicas ou económicas com comentários adicionados em off-set ou outras peculiaridades.

Os países que concorrem a um contrato lastreado pelo Fundo Nacional de Defesa (FONDEF) são, por enquanto, Brasil, China, Estados Unidos e Rússia, que oferecem os blindados Guarani, VN-1, Stryker e BTR-80/82, respectivamente. Porém, algumas informações sobre as propostas incluem alguns problemas complexos dentro de um cenário geopolítico, marcado por disputas e desconfianças entre grandes potências, e mesmo entre parceiros.

Iveco Guarani

Foto oficial da visita do Ministro da Defesa da Argentina, Agustín Rossi, a Iveco Veículos de Defesa, em Sete Lagoas (MG), para conhecer a produção do Guarani (Foto: Ministério da Defesa)

Atualmente é considerada uma solução natural para o projeto VCBR, com adesões não só do Ministério da Defesa, mas do próprio EA, que tem conseguido verificar a operação do veículo no Exército Brasileiro, e sustenta que ele se adapta aos seus requisitos técnicos.

Há uma vantagem: diz-se que a oferta técnica promove alguns benefícios de curto prazo que lhe conferem alta competitividade, pois a Iveco Argentina já possui alguma experiência com o fornecimento de componentes para projeto que o Brasil desenvolve desde 2007.

O VBTP-MR Guarani promove uma integração em defesa da Argentina e do Brasil, buscando superar as diferenças político-ideológicas que existem hoje. Embora no nível das Forças Armadas os países tenham uma excelente relação institucional, a desconfiança e os riscos persistem no nível da alta política.

Os contatos entre o Ministério da Defesa argentino e os enviados brasileiros para negociar o projeto tiveram seus principais problemas relacionadas ao financiamento. Fontes autorizadas revelaram a este cronista que do Brasil desconfiavam da possibilidade de pagamento do próprio país quando perguntavam como se pretendia “garantir o cumprimento do contrato”. Os negociadores argentinos responderam que o país cumpre suas obrigações e que não há inadimplência em desconfiar da disposição nacional de pagar ou não receber uma proposta de financiamento mais flexível.

O contraponto ecoou e, apesar das falas que surgiram em algumas peças jornalísticas de grande mídia informando que o contato para financiamento não avançou, o que não é verdade.

Norinco VN-1

O Norinco VN-1 em uso pela Marinha Venezuelana (Fonte: Armada Boliviana)

Talvez o mais cauteloso e sigiloso na negociação para ganhar o contrato, não tanto por suas peculiaridades culturais, mas sim porque entendem que qualquer iniciativa própria em nível de defesa promovida no exterior e em direção a um país ocidental irá automaticamente desencadear uma resposta da mídia que não é necessariamente informativa, mas reativa. Algo que já se viu na última vez com a oferta do VN-1 e de qualquer outra oferta que o país asiático faça na Argentina.

Do lado da Norinco, que trabalha com uma empresa de representação local para as negociações, argumentam que a capacidade de financiamento da China para a Argentina não pode ser superada por seus concorrentes. Por trás do projeto VN-1 também há um bom número de iniciativas e ofertas que poderiam ser muito tentadoras se não fossem tão disputadas pelos Estados Unidos. Eles sabem disso e, portanto, são discretos.

Porém, do ponto de vista do EA, o VN-1 possui algumas peculiaridades que não convencem: não só o design do veículo, que deve ser adaptado aos requisitos buscados, mas também o fato de não ser considerado um “produto de primeira linha” na China.

GDLS Stryker

GDLS Stryker M1126. Este veículo esta em uso pelo Exército Colombiano (Foto: GDLS)

A situação do Stryker deixa espaço para um artigo separado, entretanto, por razões editoriais, tentaremos resumi-la.

A visita do almirante de esquadra da Marinha dos Estados Unidos Craig S. Faller, comandante do Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), à Argentina não conjugou reaproximações ou “desbloqueou” acordos, como divulgou a mídia de massa nas últimas semanas. Foi uma visita protocolar da mais alta hierarquia militar com uma mensagem específica.

A sigla CAATSA parece familiar para você? Significa “Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act” (que em uma tradução literal é “Combatendo os Adversários da América por meio da Lei de Sanções”). É uma lei dos Estados Unidos que visa neutralizar a influência e venda de armamento dos adversários daquele país. Esta lei foi posta na mesa de negociações e implica em certas dificuldades para a Argentina adquirir material não ocidental, por entender o impacto que uma eventual aquisição pode ter nas relações com os EUA Complicado.

Retornando ao Striker, Faller promoveu sua venda, mas parcialmente. O que isto significa? Que os Estados Unidos oferecem à Argentina apenas as 27 unidades, da versão M1126, autorizadas via o programa “Foreign Military Sales” (FMS). Complicado.

Os negociadores argentinos mencionaram que a país precisa de mais veículos de acordo com os parâmetros do programa VCBR, além de transferência de tecnologia ou “spin-off” industrial.

A posição com relação à exigência argentina é que primeiro a LOA (carta de aceitação) seja assinada e as unidades incorporadas e, em seguida, negociado diretamente com a GDLS um outro contrato separado para mais unidades. Este comentário não trouxe tranquilidade nem segurança, visto que avançar desta forma não permite estabelecer parâmetros claros para garantir um plano de financiamento para as futuras unidades requeridas.

É sabido que o GDLS Stryker é um dos sistemas preferidos nas unidades mecanizadas e não é à toa: é moderno, completo e comprovado em combate. Porém, a oferta via FMS atrapalhou a negociação para os veículos, da mesma forma que para outros sistemas que trataremos adiante.

Rosoboronexport BTR-80/82

BTR-82A do Exército Russo (Foto: Ministério da Defesa da Federação Russa)

A Federação Russa tem insistido nos benefícios técnicos de oferecer o BTR-80/82, tanto para compensação industrial quanto para velocidade no fornecimento dos diferentes veículos blindados. Consideram que o sistema, mais barato que os demais concorrentes, pode dar ao EA uma resposta concisa aos requisitos operacionais que buscam cumprir.

Em todo caso, tanto o BTR quanto outras ofertas russas caíram em um grande problema: não foi abordado um mecanismo para financiar as aquisições, isso significa que a Argentina não sabe como serão os planos de pagamento, com que taxa e com que será o banco ou agente que garante o contrato.

Da Rússia, menciona-se que a questão não é a falta de financiamento, mas de um processo administrativo. Dentro dos parâmetros russos, as primeiras abordagens e ofertas são feitas de forma técnica, visando o interesse do comprador e é este que deve solicitar um pedido formal de orçamento. Dentro da pasta onde o equipamento e os preços de cada um deles são listados, os planos de financiamento são frequentemente abordados por atores russos.

Na órbita da Defesa Argentina, as ofertas russas correm com a desvantagem de não terem sido presenteadas com este item fundamental, pensando até que as compras deveriam ser feitas sem planos de pagamento. Porém, a Rússia está se repensar seu plano de influência na região e propondo alternativas de financiamento mais flexíveis.

O desafio internacional do programa

Com esses breves argumentos, observa-se que o programa VCBR caiu no abismo da fenda geopolítica. Termos como CAATSA e suas implicações em termos de política externa, atitudes de desconfiança política, operações de imprensa e bombardeios informativos, ameaças ou dificuldades de adequação de financiamento levaram a atrasar o processo de tomada de decisão para definir o futuro do parque blindado sobre rodas do EA.

Lê-se muito bem que as disputas internacionais acabaram tendo impacto até mesmo em um projeto que tem uma longa história na Argentina e que só leva ao espinho de qualquer posição que se deseja realizar. Hoje em dia, o avanço do projeto VCBR é um grande desafio para o Ministério da Defesa e para o Ministério das Relações Exteriores da Argentina, atores que devem atuar como equilibristas para chegar a uma conclusão bem-sucedida dos planos de capacitação militar, mas sem impactos negativos em outras áreas.

Diante dessa situação, o perfil do projeto está atualmente travado, não por decisões próprias, mas por testamentos do exterior. Retirá-lo vai precisar de muito jogo de cintura e apoio político.

 

Matéria publicada originalmente no portal Zona Militar com o título “El proyecto VCBR del Ejército Argentino es eje de una disputa geopolítica”.

 (*) Zona Militar é uma publicação argentina de defesa, segurança e geopolítica, criada em 2015, e parceira de Tecnologia & Defesa no intercâmbio de informações, para manter os leitores atualizados das notícias importantes que ocorrem entre os dois países.

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Comentários

9 respostas

  1. Se a Argentina quiser correr de sanções americanas e crescer de forma definitiva, obter tecnologia e um apoio real no projeto de aquisição, eles devem escolher o Guarani por tudo o que foi colocado na opinião sobre este assunto.

    Se a Argentina correr pro lado da China ou Rússia, a situação da EA ficará pior do que já está. Li vários comentários de argentinos dizendo que o Guarani não presta, isso e aquilo outro. Eles querem ter caças russos e 8×8 também russo.

    Para a Argentina é o seguinte: ou Guarani ou Stryker. VN-1 e BTR-80/82, é pedir pra levar na cara e os americanos não vão sentir dó alguma. Como dito, se a argentina quiser sair dessa pindaíba que está sua EA, obter tecnologia e parceria confiável, vão de Guarani. Do contrário, veremos, cada vez mais, o declínio deles na região.

    Bom, vamos ver o que de fato será assinado na mesa.

    1. Os Argentinos são idênticos aos Chilenos, Mesmo que o Brasil tivesse o melhor blindado do mundo eles escolheriam qualquer um menos o Brasileiro.
      Já vi Chilenos dizendo que o KC-390 não presta que e ruim, e preferiam ate o C-130H no lugar do KC-390.
      Ou seja preferem algo importado invés de adquirir algo de um pais vizinho somente para se sentirem “superiores”

      1. É por pensamentos ridículo por parte deles que nunca teremos uma ”OTAN” na AL. Todos os países poderiam se juntar para desenvolver projetos militares, tecnologia e etc. Mas não há um interesse por parte deles nisso. Quando você fala que eles escolheriam qualquer coisa menos o brasileiro, é a mais pura verdade. Se você for em canais militares argentinos, chilenos, mexicanos, você sempre verá comentários de desprezo que eles sentem pelo Brasil. Nada para eles que venha do Brasil serve.

        1. Não estampa s muito difirentes deles.
          Já cansei de escrever em vários fóruns de defesa os N,s projetos que a CITEFA dentre outras instituições da AL possuem e que seriam muito bons para o Brasil, mas nunca queremos.
          Nós preferimos ir nos Estes comprar sucata para reformar do que cooperar com nossos vizinhos.
          Vamos na Europa comprar ao invés de cooperar ou comprar local.
          Olha os casos do Patrulheiro da Amazônia, LPR-40 (que serão desativadas) Gaúcho etc etc.
          E ao contrário do que escreve, recentemente a Argentina comprou vários veículos Agrale (até a versão caminhão leve desprezada pelos EB para comprar o Unimog).
          Outros países utilizam o T-27, ALX, Bombas guiadas nacionais etc.
          Desculpe amigo, o preconceito contra o produto nacional vem do próprio braseiro.
          Olhe o caso Guará 4WS x LMV e tantos outros.
          Quanto a uma “OTAN” Latino Americana, tinha a UNASUR, porém governos recentes a des-mantelaram com desculpa de ser um movimento Bolivariano.

          1. Não há como negar que eles SÃO SIM, preconceituosos com produtos brasileiros. Eles terem comprados isso e aquilo não muda este fato. Preconceito, por parte do brasileiro, no que se refere aos produtos nacionais, sempre existirá. Inclusive, se pararmos para observar, o preconceito também existe na própria Argentina, quando o assunto se trata em tecnologia própria, ou seja, para eles, nada está bom.

  2. É está ruim para o Guarani, pois o mesmo está disputando com dois “medalhões” provados em combate e com eficiência comprovada (BTR, Striker).
    Já o da Norinco se encontra no mesmo patamar do Iveco, nunca foi provado em combate e é um azarão que pode se tornar uma zebra !
    A extinta UNASUR deveria servi para isso, facilitar, íntegra projetos e produtos de defesa na AL.
    Más algum “gênio” da política resolveu que a mesma não era importante frente a outras instituições de mesmo carácter internacional e que não tem nada haver conosco aqui.

    1. “Más algum “gênio” da política resolveu que a mesma não era importante”
      “No entanto, a falta de consenso na escolha do Secretário-Geral da organização, por exemplo, fez com que a Unasul ficasse “paralisada” e seis países-membros decidiram, em 2018, suspender por tempo indeterminado a participação nas reuniões do bloco. A partir deste momento, vários países anunciaram sua saída definitiva. Colômbia em agosto de 2018,​ Equador em março de 2019,​ Argentina, Brasil, Chile e Paraguai em abril do mesmo ano, e o Uruguai em março de 2020. Em 2019, com o objetivo de contrapor-se à Unasul, presidentes de 8 países da América do Sul criaram o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL). Em abril do mesmo ano, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro formalizou a saída do Brasil da Unasul, junto com os presidentes de Argentina, Chile e Paraguai.”
      Ou seja o Brasil foi um dos últimos a sair da aliança que vinha capengando desde 2018;

      1. Ou seja, eu estava correto.
        Pois não disse que “gênio político” e de qual país resolveu isso.
        Correto ???

  3. “Os negociadores argentinos responderam que o país cumpre suas obrigações e que não há inadimplência em desconfiar”

    Isso cheira a calote!Como os gringos vão pagar se não tem credito, estão falidos, pergunta quem garantira os argentinos no contrato, não é?

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