Memória T&D: Nem em sonho imaginava….

O escritor brasileiro Paulo Coelho, se não estou enganado, disse certa vez que “quando se quer muito uma coisa, o Universo conspira a favor, ainda que seja inconsciente. Então, vamos lá. Tudo começou com as famosas cartinhas despachadas desde a minha cidade no interior de São Paulo, as famosas “Dear Sirs! I am a brazilian boy and I have sex teen year sold (interessante é que o tempo passava mas a idade não se alterava). If will be possible I like to receive some pictures about your planes, that I like so much.”

Cheia de erros ou não, muitas vezes com o auxílio da professora de Inglês do ginásio, depois colegial, foi assim, como tantos outros garotos, amigos da época, começamos uma relação de amizade com a Saab (e outras mais), com a intenção de obter fotos de aviões, muitas das quais ainda existem em meus arquivos, guardadas com o maior carinho. Meu favorito era o Draken (que quase operou no Brasil), substituído nos meus devaneios pelo fantástico Viggen, aeronave da qual continuo sendo um fã. Tenho guardadas em algum lugar imagens incríveis deste caça.

Então, e o tempo passou e a maturidade chegou. Aquele jovem entusiasta, depois de muitas atividades e funções que a vida lhe trouxe, acabou por se tornar o editor chefe da revista “Tecnologia & Defesa”, de alguma forma não deixando o ideal de gente do naipe de Roberto Pereira de Andrade desaparecer. Continuamos o trabalho, mantivemos o ideal e a luta iniciada em 1983, agora já prestes a completar 40 anos, e inspirados ainda em um Carlos André Spagat, o maior pioneiro deste segmento de imprensa.

Muito bem. Em 1996, este jornalista estava no Chile para cobrir mais uma edição da FIDAE, quando foi possível se conhecer muitos funcionários da Saab que lá estavam a trabalho e de modo especial uma pessoa da área de Comunicação, a sra. Pia Forés, a qual, por ser casada com um espanhol, não tinha problemas maiores para se comunicar usando o muito útil “portunhol”. Muitas conversas sobre um novo avião de combate sueco, pois estávamos começando um programa chamado F-X1 e, inclusive sobre um Scandia (bimotor de passageiros) que eu tinha visto em um museu na cidade de Bebedouro, no Estado de São Paulo, coincidentemente meu local de nascimento (comarca de Andes). Lembro-me de vários olhos azuis brilhando de satisfação, vislumbrando uma eventual aquisição daquela peça rara, sua recuperação e repatriamento. Fiquei de passar todas as informações que tinha do Scandia para a representação consular da Suécia, o que foi imediatamente feito. Contudo, devo confessar que eu nunca soube o desfecho do caso.

No retorno ao Brasil, quase que imediatamente, fui convidado a embarcar na fragata Type 22, ex-Broadsworth, incorporada pela Marinha com o nome de Greenhalgh, junto a mais três unidades do mesmo tipo, uma transação que causou muita polêmica na Grã Bretanha. Fui o segundo jornalista a embarcar no navio.O primeiro foi Ricardo Bonalume Neto, um dos maiores e mais competentes profissionais que já tive a oportunidade e a honra de conhecer e trabalhar junto. Fizemos duas grandes reportagens a quatro mãos. Uma para a “Folha de São Paulo” e outra para “Tecnologia & Defesa”.

Finda a missão no mar, estava eu no Porto de Santos aguardando alguém ir me buscar, enquanto procurava “lembrar para que lados ficava minha casa” depois de mais de duas semanas fora, até que um amigo chegou para me pegar. Despedi-me daquela magnífica tripulação com a firme intenção de cultivar as ótimas amizades e camaradagens feitas a bordo. Subindo a Via Anchieta em direção a São Paulo, em tom jocoso e de gozação, meu motorista disse: “Xyko Ferro, eu acho que vc. já ganhou o bilhete vermelho em casa. Sua esposa não deve estar mais te querendo por lá e já fez uma nova mala de viagem para vc ”Não sem algo de preocupação comecei a pensar “bom, tenho passado muito tempo fora, longe às vezes, incomunicável, não raro, as crianças devem sentir a minha falta”, e por aí afora… Em determinado momento, não segurando mais a curiosidade, perguntei: “mas que histórias são essas?” Depois de uma breve gargalhada ele me disse exatamente isso: “ uma boa viagem. Vc. está de partida para a Suécia, a convite  dos vikings”. Sorte eu estar no assento do passageiro, senão acho que teria caído. “Vc. parte em dois dias”, arrematou.

Foi curta a espera para a jornada, mas muito pensativa. O mais distante que eu já tinha ido era Paris, no Salão Aeronáutico de Le Bourget. Porém, a maravilhosa capital francesa não parecia estar em outro continente; uma cidade do mundo, com todas as facilidades, belezas e encantamentos à disposição de um rápido deslocamento de Metrô. Mas, a Suécia? O que eu sabia dessa longínqua terra ao Norte do planeta a não ser o endereço da Saab para onde aquele garoto mandava seus pedidos de fotos; que ali vivia um povo de navegadores e guerreiros ferozes; o registro de um passado de conflitos que cedeu espaço para uma tradição de neutralidade e não alinhamento; e que era uma monarquia constitucional cuja rainha nascera no Brasil, Silvia, casada com o rei Carlos XVI Gustavo. Também fora lá que, em 1958, a Seleção Brasileira de Futebol sagrou-se campeã pela primeira vez, revelando a figura do jovem Edson Arantes do Nascimento, o Pelé; era a terra da Scania, Ericsson, Bofors e da Volvo;nos salões da capital, Estocolmo, fazia-se a entrega dos Prêmios Nobel; era um país desenvolvedor de sistemas militares inovadores e avançados; havia um tenista

Björn Borg, que ganhava tudo; um cineasta famoso chamado Ingmar Bergman; e uma banda de rock que havia conquistado o mundo, o Abba. Temperando essa “mistura” um evoluído conjunto de benefícios sócio-econômicos e educacionais para a população.

Vi, sem presunção, que sabia bastante sobre eles, pensei, vamos, pois, para aquelas paragens.E, de repente, estava no check-in do Aeroporto Internacional de São Paulo-Guarulhos, pronto a embarcar num voo de DC-10 da VASP com destino a Bruxelas, na Bélgica, de onde partiria em conexão pela SABENA para Estocolmo. O grande problema, com um pouco de susto, foi que a aeronave brasileira teve uma pane quando já alinhava na cabeceira para a decolagem.  Em resultado veio uma demora de quase 24 horas até que houvesse um novo aparelho para seguir viagem. Isso também teve como reflexo o extravio de bagagens por inúmeros cantos da Europa, com os horários todos desencontrados. Da Bélgica, consegui chegar a Estocolmo no final do dia seguinte, em Arlanda, com praticamente “zero” pessoas naquele terminal aéreo e sob o clima de penumbra que caracterizava as noites nórdicas. Depois de registrar a queixa de extravio de bagagem e receber um kit básico de apoio, parti em busca do hotel em plena madrugada sem conhecer absolutamente nada de onde estava. No corredor encontrei um faxineiro, muito jovem, ao qual fui tentar a sorte em busca de informações. Para meu espanto o rapaz me explicou o que eu precisava saber em um inglês que me fez ficar envergonhado até. Falei comigo mesmo: “Admirado? Bem vindo à Suécia!” Mesmo com os contratempos, coisas impressionantes viriam pela frente.

Ao passar quase sem perceber pelo saguão do Radisson Estocolmo (acho que era o enorme sono e cansaço) ouvi chamarem por meu nome. Quando me virei assustado tive como que uma visão do paraíso. Era meu amigo e irmão chileno Christián Marambio que não arredara o pé dali esperando por mim. Estava salvo e com apoio. Bebemos umas cervejas, combinamos dar um pulo no centro pela manhã para eu comprar alguma roupa, antes de haver o início oficial do Press Tour para o qual havíamos sido convidados e fomos dormir. Assim encerramos o dia/noite sem mais novidades. Logo cedo tratamos de cumprir nossa programação enquanto mais jornalistas iam chegando ao hotel ponto de encontro.  Da América do Sul, somente três; eu, que me tornava no primeiro jornalista brasileiro a conhecer “in loco” a nova sensação em termos de aeronave de combate sueca, o Marambio e o uruguaio Andrés Matta. Formamos, durante toda a viagem um trio divertidíssimo e do qual todos queriam se aproximar.  Ah sim! Havia mais um que se dizia sulamericano por adoção, o insuperável Adrian English. Foi demais aquele breve período.

Seguindo o roteiro estabelecido partimos de C-130 Hércules para Satenäs, às margens do imenso lago Vänen, sede da Flotilha 7 da Real Força Aérea Sueca (Flygvapnet) ou Skaraborgs Fligflottilj. Ali, com presença real e uma tradicional e lauta refeição típica (com muita cantoria), se dariam as comemorações dos 70 anos da instituição e a apresentação do JAS-39 Gripen. Tudo muito marcante com as oportunidades de se conhecer um acurado museu, conversar com pessoal militar, visitar o Gripen Centre e se inteirar um pouco sobre os trabalhos lá desenvolvidos, principalmente quanto a conceitos de guerra eletrônica centrada em redes, tão apropriados ao novíssimo vetor. Para este jornalista, já muito orgulhoso da deferência recebida, abrindo caminho para tantos outros colegas que vieram depois, ainda se registrou a localização da bagagem extraviada graças à dedicação e eficiência dos funcionários da Saab destacados para isso. Nenhum reparo ou reclamação a serem feitos.

Usufruindo dos auspícios de companhias locais e da IFV (organismo estatal de assuntos referentes a material de defesa) o giro continuou, com visitas e palestras em inúmeras empresas que não deixavam de impressionar pelo nível tecnológico de seus produtos e conhecimentos. Detalhes inesperados puderam ser “vividos” como o embarque no cruzador City of Hue, da Classe Ticonderoga da Marinha dos Estados Unidos para um dia de operações a bordo durante o exercício Baltops, entre as costas da Suécia e Países Bálticos; assistir uma simulação de decolagem de combate (scramble) em uma rodovia – e utilizando Viggen, ver as manobras de um StrV-103 (o famoso tank sueco sem torre) e tantas coisas e atividades mas que hoje, o tempo já embaraça a memória de dias tão especiais  como aqueles.

Contudo, aquilo que “nem em sonho se espera”, como fora a viagem, estava por acontecer. Estávamos em Linköping, no final do Press Tour, e no meio de um agradável “jogar conversa fora” com algumas pessoas da Saab, comentei sobre a minha história (das cartinhas em busca de fotos) e de como teria ido parar ali naquele momento. Não reparei, mas uma jovem separou-se do grupo e, quando voltou estava com um pedaço de papel nas mãos, amarelado e quase ilegível. “ Is this your letter?”, perguntou. Parado, com os olhos marejados, sem acreditar, reconheci. Sim, era uma das minhas “I am a brazilian boy…” Estava guardada todos os anos decorridos (e não foram poucos). Para este velho jornalista, uma das maiores homenagens recebidas durante mais de 40 anos de carreira. Prova de amizade e respeito de pessoas a quem eu pensava que só dava incômodo… Ficou por toda a vida……

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