Lições do Conflito Irã-Israel para a autonomia estratégica do Brasil

O embate direto entre Irã e Israel constitui uma verdadeira cátedra em tempo real para os estudiosos das guerras, que expõe como as capacidades tecnológicas e de mobilização industrial de um determinado Estado decidem seu destino no jogo de poder global. E essas capacidades compõem o que se chama de autonomia estratégica. 

Entretanto, enquanto os céus do Oriente Médio são rasgados por drones e mísseis, em Brasília persiste uma negligência sistêmica que compromete, lenta e silenciosamente, os alicerces de nossa autonomia estratégica: a má gestão de nossa Base Industrial de Defesa (BID) e a pouca importância dada a composição de nosso poder militar.  

A República Islâmica do Irã, isolada desde 1979, foi forçada a uma estratégia de autossuficiência que catalisou sua inovação endógena. Seguindo “o manual” do desenvolvimento tecnológico tardio, o país começou com engenharia reversa, evoluiu para o aperfeiçoamento e alcançou a inovação criativa, resultando em sistemas de armas de relativa eficiência e de notável custo-benefício, como os drones de ataque Shahed, contrariando todas as previsões de analistas que pregavam a impossibilidade de tal estratégia se concretizar. 

A doutrina iraniana não parece almejar a paridade tecnológica com adversários tecnologicamente superiores, mas sim a saturação do ambiente operacional. A tática visaria colapsar as avançadas defesas de um beligerante mediante o emprego de vetores de baixo custo, em uma estratégia cuja manifestação mais contundente foi o recente ataque massivo a Israel.

A lógica dos iranianos repousa sobre fundamentos econômicos: enquanto um drone iraniano custa um punhado de dólares, os artefatos de interceptação de sistemas como o Domo de Ferro ou o Patriot apresentam custos individuais que podem ultrapassar a casa dos milhões. Essa assimetria torna o paradigma defensivo de alta tecnologia israelense estruturalmente insustentável em um confronto prolongado, deslocando o eixo basilar do conflito da aquisição e emprego de itens da Fronteira Tecnológica Mundial (FTM) para o da massificação de outros de intensidade tecnológica mediana, mas com alto custo-benefício.

Nesse quadro, a gravidade da crise na Defesa Nacional brasileira torna-se evidente. Ao negligenciar sua BID, o Brasil renuncia à autonomia sobre a produção de bens estratégicos, submetendo-se a uma perigosa dependência externa e, por consequência, o país se encontra em uma posição singularmente vulnerável: não realizamos Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) dos sistemas mais avançados da FTM, como Israel, e estamos perdendo a capacidade de mobilização industrial para massificar itens com custo-benefício, como o Irã. 

Essa fragilidade expõe a nossa Defesa Nacional às oscilações políticas e pressões geoestratégicas, vulnerabilidades agravadas por um alinhamento ideológico de Brasília com atores que pouco ou nada contribuem para o fortalecimento de nossa BID, seja via aquisições ou por transferência de tecnologia, uma vez que buscam apenas a venda de soluções prontas sem qualquer compensação relevante.

De fato, o subfinanciamento crônico de nossas empresas de material bélico e de nossos militares transcende a esfera orçamentária, configurando-se como um processo deliberado de erosão do poder militar nacional. Nesse sentido, a advertência de Ruy Barbosa, no final do século XIX, soa com inquietante atualidade: “Esquadras não se improvisam, e as nações que confiam mais em seus diplomatas do que nos seus marinheiros e soldados estão fadadas ao insucesso.”. 

Projetar e construir um poder militar crível demanda décadas de investimentos contínuos, algo que as esferas decisórias em Brasília insistem em ignorar. O aporte em Defesa permanece estagnado em cerca de 1% do PIB, menos da metade da média global de 2,3% e muito aquém do que propõe a Organização do Tratado do Atlântico Norte (5% até 2035). Mais alarmante é a composição desse orçamento, com aproximadamente 80% absorvidos só por despesas com pessoal, restando uma fração ínfima para P&D e para comprar de nossa BID. 

A absoluta imprevisibilidade orçamentária, marcada por planejamentos anuais e contingenciamentos frequentes, asfixia nossas empresas e compromete a operacionalidade das Forças Armadas. Assim, projetos estratégicos, que exigem continuidade ao longo de múltiplos governos, são quase inviabilizados. Para a BID, isso se traduz na impossibilidade de investir em P&D que busque a FTM, deflagrando um círculo vicioso de obsolescência tecnológica, dependência externa, falência de empresas e uma preocupante evasão de cérebros que dificilmente retornarão no futuro.

As consequências mais graves dessas problemáticas já são tangíveis. Iniciativas como o Programa de Desenvolvimento de Submarinos e o Programa Fragatas Classe Tamandaré, fundamentais para a salvaguarda da Amazônia Azul pela Marinha do Brasil, sofrem com descontinuidades financeiras. O Exército é forçado a reduzir aquisições dos blindados Guarani e dos componentes do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), enquanto a Força Aérea enfrenta dificuldades no cronograma de recebimento das aeronaves KC-390 e F-39. Em paralelo, unidades militares em todo o país operam com estoques de combustíveis e de munições em níveis críticos e ocorre drástica redução no adestramento e treinamento das tropas, exemplificado por menos horas de voo, menos de dias de mar e pouca prática de tiro.

Toda essa negligência é frequentemente justificada por um debate público contaminado pela obsoleta e enganosa dicotomia “canhão ou manteiga”, que opõe a Defesa Nacional ao bem-estar social. Ignora-se que investimentos em P&D em uma BID historicamente impulsionam a inovação, gerando um efeito de derramamento tecnológico com derivações para a base industrial civil, com tecnologias disruptivas como a Internet e o GPS, concebidas em programas militares, sendo os exemplos mais emblemáticos. Rejeitar essa compreensão é abdicar da construção de nossa autonomia estratégica.

O mundo se surpreendeu com a resiliência e a rápida resposta do Irã frente ao adversário com muito mais poder relativo que é Israel. Nessa linha, é preciso entender que a dissuasão e a capacidade de reação não são frutos do improviso: elas decorrem de investimentos contínuos e planejamento de longo prazo. O conflito entre Irã e Israel escancara que a autonomia estratégica de uma nação se mede não só pela robustez de seu poder de militar, mas pela sinergia do mesmo com as capacidades de mobilização logística nacional.

Os acontecimentos no Oriente Médio devem nos levar a reflexões profundas para tentar reverter o quadro de abdicação da nossa autonomia, o que exige um consenso nacional em torno da Defesa Nacional como sendo primordial para a sobrevivência da nação, e que ela conte com mecanismos de financiamento plurianuais que assegurem previsibilidade à BID e às Forças Armadas, em consoante com compras recorrentes, promoção de negócios no exterior e de parcerias que realmente nos tragam benesses de longo prazo. 

O futuro da soberania brasileira não será decidido só observando os campos de batalha distantes, mas debatendo com maturidade as questões orçamentárias, apoiando P&D nos laboratórios de pesquisa e dando condições de sobrevivência para as empresas da BID. Façamos isso para não sermos surpreendidos e para que possamos ter capacidade de enfrentar quaisquer agressões; e elas virão.

A construção deste futuro, contudo, deve começar agora, alicerçada não em ideologias anacrônicas, em falsas dicotomias ou em parcerias infrutíferas, mas em uma avaliação lúcida, pragmática e corajosa do interesse nacional e do papel da autonomia estratégica na era contemporânea para, observando o que acontece entre Irã e Israel, nunca esquecer: “Esquadras não se improvisam”.

Luis Manuel Costa Mendez é Mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança e Especialista em Altos Estudos de Política e Estratégia

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Respostas de 4

  1. O Sr. Luiz Mendez resumiu os baixos investimentos na BID brasileira e suas consequências com um apoio didático rico e atual, baseado no conflito Israel x Irã, sem abrir mão da precisão das suas conclusões. Excelente texto.

  2. Não vejo outro caminho que não o subsídio da BID, pelo governo brasileiro, a exemplo do que acontece já em outros países, considerados desenvolvidos.

    Além do subsídio, a sinergia tecnologica que poderia ser desenvolvida entre os institutos de engenharia militar IME e ITA, faculdades e BID, geraria empregos, saltos tecnologicos nos produtos de defesa e disponibilidade dos seus derivados para a sociedade brasileira.

    País que não investe em estudo, tecnologia e BID está fadado a viver na idade da pedra.

    Uma nação só é soberana se conseguir defender seus interesses pelos próprios meios.

    parabéns pelo texto! Que nossa BID possa prosperar!

  3. Essas oscilações políticas ao invés do pragmatismo dogmático,expõe a fragilidade da nossa Defesa Nacional às e pressões geoestratégicas, principalmente pelas opções equivocadas.

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