O abarroamento do navio português Resolute pelo navio patrulha venezuelano Naiguatá (GC-23), ocorrido há dois dias (30 de março), possui os clássicos ingredientes de uma crise originada no mar, cada envolvido tem a sua versão dos fatos e alega ter navegado por latitude e longitude totalmente diferente da informada pelo lado contrário.
Para variar, alguém está mentindo, a única certeza do episódio que custou a Marinha da Venezuela, sem ver combate, um navio patrulha novo, com 11 anos de uso, fabricado pela espanhola Navantia.
Por outro lado, ainda é um mistério o que o navio Resolute, um colosso de 8.300 toneladas e operado na ocasião alugado pela empresa Columbia Cruise Services, estaria fazendo na região com 32 almas na tripulação e sem passageiros a bordo, segundo declarou o seu comandante após fugir do local e atracar no porto de Willemstad, Curaçao.
Transportando mercenários ou operadores de forças especiais?
Afinal, por que o comandante do Naiguatá (GC-23) tomou a decisão extrema de sacrificar um dos preciosos e raros navios da Armada Bolivariana de Venezuela desta forma?
A parte o fato de que a Venezuela não conta com meios navais em quantidade e qualidade há um bom tempo, a perda desse patrulha, pela forma como se deu e suas repercussões, representa uma tragédia material para a Força Naval da nação caribenha e mais uma vergonha para o regime de Maduro.
Mas se poderia ficar pior, ficou.
A Marinha dos Estados Unidos (US Navy), sob ordens do presidente Donald Trump, adotou nesta quarta feira, 1º de abril, uma estratégia de estrangulamento do regime estabelecendo um bloqueio naval e aéreo no litoral da Venezuela sem empregar seus meios mais poderosos, dessa forma legitimando uma pretensa “operação anti-narcóticos”.
Para os líderes venezuelanos, isso representa uma poderosa estaca cravada no coração do regime, e para Trump, uma cartada como nem os jogadores de poquer profissionais jogando nos cassinos de Las Vegas ousariam fazer, ainda mais em tempos de Pandemia COVID-19.
Sem declarar guerra, realizar uma invasão ou maquinar complexos acordos internacionais para engendrar uma “coalização internacional liderada pela ONU”, como visto nos últimos 75 anos, os Estados Unidos adotam um novo estratagema, sufocar as formas de sustento do regime, legítimas e ilegítimas, aproveitando-se da patente fraqueza militar da Venezuela no mar e do momento vivido em todo o mundo com a Pandemia do Corona.
“O povo venezuelano continua sofrendo tremendamente devido a Maduro e seu controle criminal sobre o país, e os traficantes de drogas estão aproveitando essa ilegalidade”, afirmou em coletiva o secretário de Defesa Mark Esper, logo após o anúncio do presidente Trump.
A imposição desse bloqueio naval é uma das maiores operações militares dos Estados Unidos na região desde a invasão do Panamá em 1989 para remover o general Manuel Noriega do poder e levá-lo a Justiça Norte-Americana para enfrentar acusações de tráfico de drogas. Envolve ativos como navios de guerra da US Navy, aeronaves de vigilância AWACS para o mantenimento de uma zona de exclusão aérea e o provável emprego de forças especiais em quantidade (e qualidade) raramente vistas na região.
O objetivo “oficial” seria dobrar a capacidade antidrogas dos EUA no Hemisfério Ocidental, com forças navais e aéreas operando no Caribe e no leste do Pacífico. O secretário Esper, dentro do tradicional ato de obter suporte internacional para legitimar a ação, disse que a operação tem o apoio formal de 22 países parceiros.
“À medida que governos e nações se concentram no coronavírus, existe uma ameaça crescente de que cartéis, criminosos, terroristas e outros atores malignos tentarão explorar a situação para seu próprio ganho”, disse Trump. “Não devemos deixar isso acontecer.”
A missão de sufocar o regime já dura meses, mas assumiu maior urgência após a acusação de Maduro, na semana passada, com sua cabeça a prêmio por US$ 15 milhões. Maduro e sua cúpula do regime foram formalmente acusados de liderar uma conspiração narco-terrorista responsável por contrabandear até 250 toneladas de cocaína por ano para os EUA, cerca da metade por via marítima (com a participação de traficantes cubanos com fortes ramificações na Flórida e pelo Caribe).
“Se eu fosse indiciado por tráfico de drogas pelos Estados Unidos, com uma recompensa de US $ 15 milhões por minha captura, e com a Marinha dos EUA realizando operações antidrogas na minha costa, eu me preocuparia”, disse o senador Marco Rubio, um republicano da Flórida que está entre os defensores de uma postura mais agressiva contra Maduro.
O ministro das Comunicações de Maduro, Jorge Rodriguez, chamou o envio de forças aeronavais de “uma tentativa desesperada para distrair a atenção interna da trágica crise humanitária” nos EUA causada pelo coronavírus. Em um tom irônico, ele disse “pela primeira vez em décadas, os EUA estão tentando sufocar o suprimento de cocaína, que segundo ele, vem principalmente da Colômbia, um forte aliado dos Estados Unidos.
Maduro criticou a recompensa de US $ 15 milhões por sua prisão, qualificando Trump como um “cowboy racista” obcecado por colocar as mãos nas reservas de petróleo da Venezuela, a maior do mundo.
Dentro dos Estados Unidos, muitos parlamentares em Washington criticaram o plano apresentado na última terça-feira pelo secretário de Estado Mike Pompeo, de criar um conselho de cinco membros sem Nicolás Maduro ou Juan Guaidó para governar o país até que as eleições possam ocorrer dentro de um ano.
Embora seja a primeira tentativa em meses dos EUA de buscar uma solução negociada para o impasse na Venezuela, logo após as acusações, muitos acham que o bloqueio naval e aéreo tem pouca esperança de sucesso e provavelmente afastará mais ainda o Governo Maduro de um possível diálogo (ou rendição).
O governo Trump há muito tempo insiste que todas as opções estão sobre a mesa para remover Maduro, incluindo as militares. Ainda assim, não há indicação de que algum tipo de invasão esteja sendo lançada por agora, o que não quer dizer que não tenha sido planejada ou que não vá ocorrer, dependendo da evolução do cenário.
https://www.facebook.com/oneoceanexpeditions/videos/441566006481259/
Vídeo no Facebook mostra em detalhes o RCGS Resolute (link acima)
Para as Agências Anti-Narcóticos dos Estados Unidos, por sua vez, o envio de navios e aeronaves para o Caribe atende um apelo de longa data do Comando Sul dos EUA (US South Command) por mais ativos modernos e com poder de fogo para combater traficantes dos cartéis de drogas e outras ameaças à segurança no hemisfério.
A coisa toda também pode ser interpretada como uma mensagem de apoio ao rival de Maduro, Juan Guaidó, especialmente dentro da Venezuela.
O promotor-chefe de Maduro ordenou que Guaidó testemunhasse na quinta-feira (02/04) como parte de uma investigação sobre uma suposta tentativa de golpe.
Guaidó, o ex-chefe do congresso da Venezuela, reconhecido como líder legítimo de seu país pelos EUA e quase 60 outras nações, não deverá comparecer, aumentando a possibilidade de que venha a ser preso pelos chavistas, algo que o Governo Norte-Americano já alertou que não irá admitir. Washington considera Guaidó intocável sob qualquer ponto de vista.
Um navio de histórico duvidoso: RCGS Resolute
O navio RCGS Resolute, que Nicolas Maduro acusou de ter abalroado um barco da Marinha da Venezuela, tem bandeira portuguesa desde 2018, quando foi registado na Madeira, mas pertence, segundo a imprensa portuguesa destacou, à empresa Bunnys Adventure and Cruise, com sede em Hamburgo, Alemanha.
O navio é operado por uma outra empresa, a canadiana One Ocean Expeditions, que nos últimos meses viu o Resolute envolvido numa série de outros incidentes principalmente pela acumulação de dívidas, de acordo com informações do site Vesseltracker.
Construído em 1991 nos estaleiros da finlandesa Finnyards, o navio, um cruzeiro de passageiros (capacidade para 146 pessoas) com mais de 120 metros de comprimento, foi registado inicialmente, em 1993, em Nassau, nas Bahamas, pela Bunnys Adventure and Cruise, já então com proprietários alemães.
Acabou por ser registado na Madeira, onde há mais de 600 navios, mas apenas uma dezena de cruzeiros.
Em 2018 foi adaptado para fazer expedições à Antártida, sob operação da One Ocean Expeditions. Em agosto de 2019 foi arrestado no Canadá por causa de um processo para cobrança de uma alegada dívida de 100 mil dólares à empresa Atship Services, mas acabou por seguir viagem.
Em outubro do ano passado o navio voltou a ter problemas. Tentou aportar num porto da Argentina, mas não foi autorizado, devido a dívidas que estavam por liquidar, até que a 4 de novembro foi autorizado a aportar em Buenos Aires com 162 passageiros e 49 tripulantes.
Era a última escala antes de rumar à Antártida, mas os passageiros tiveram de abandonar o navio, que ficou nos terminais Rio de Plata.
Segundo o site Vesseltracker, o navio ficou parado mais de um mês em Buenos Aires,até final de novembro. Deslocou-se depois para a Holanda, onde esteve menos de 48 horas, regressando a 10 de dezembro a Buenos Aires, onde permaneceu até 5 de março.
A 30 de março o Resolute colidiu com a lancha venezuelana Naiguatá e na terça-feira, 31 de março, chegou ao porto de Willemstad, Curaçao.
No seu Facebook, a One Ocean Expeditions publicou em outubro do ano passado uma nota informando os seus clientes de que a empresa estava em reestruturação devido a dificuldades provocadas por um conflito no início do ano com os proprietários russos de dois dos seus navios.
Do histórico de viagens do Resolute constam passagens breves por águas portuguesas. Em maio de 2017 passou por Ponta Delgada e Funchal e em junho esteve algumas horas em Lisboa.
Em outubro desse ano voltou a passar por Lisboa e pelo Funchal. Em 2018 esteve a 19 de março em Portimão e a 20 de março em Lisboa. Desde então não voltou a passar por portos portugueses.