- O avião ATL-100 vai vai ser fabricado em uma nova unidade de aeronáutica em Portugal, um investimento inicial de 20 milhões de euros, segundo o diretor do CEiiA para a Aeronáutica e Defesa, Miguel Braga.
Em entrevista a repórter Ana Maria Ramos, do periódico português “Diário de Notícias“, o diretor do CEiiA para a Aeronáutica e Defesa, Miguel Braga, fala sobre a aliança com a DESAER para fabricar o ATL-100 em Portugal, e muito mais.
O protótipo da aeronave ATL-100 foi apresentado em 2019 na maior feira de aeronáutica de São Paulo. Em que parte do projeto entra o CEiiA?
O CEiiA é um centro de engenharia e desenvolvimento de produto com uma já longa experiência na aeronáutica. Começamos há mais de 12 anos a trabalhar com um dos maiores fabricantes de helicópteros do mundo, prosseguindo com uma fortíssima envolvência na aeronave KC390, o avião cargueiro militar brasileiro da Embraer, no qual continuamos a trabalhar em várias actividades de certificação civil e militar. A semana passada fechámos com a Desaer, uma empresa brasileira focada na industria aeronáutica, um contrato no qual seremos corresponsáveis pelo desenvolvimento da ATL 100, que será fabricada, montada e comercializada por ambas as empresas. O CEiiA alocará uma equipa de 60 engenheiros, em crescendo, à medida das diferentes fases de desenvolvimento. Do lado da Desaer o número de engenheiros será, pelo menos, duas vezes superior. A equipa de engenharia do CEiiA estará fixada no Parque de Ciência e Tecnologia de Évora, uma cidade também ela cluster aeronáutico.
Que vantagens traz esta parceria?
A grande vantagem para o CEiiA, para Portugal e para a própria Desaer será a criação de competências novas, que o CEiiA não possui e não desenvolveu até hoje. O centro tem fortíssimas competências de engenharia de desenvolvimento, na área do desenho e do cálculo estrutural de segmentos e componentes de aviões, que adquiriu ao longos destes últimos 12 a 13 anos e a participação no projeto ATL 100 permitirá desenvolver competências ao nível dos sistemas e, particularmente, da integração de sistemas, mas também ganhar competências ao nível dos aviónicos e da integração de motores e de outras fases do que é tipicamente um processo de desenvolvimento de um avião, que Portugal passará a ter através do CEiiA e através da sua envolvência nesta aeronave.
O que representa este projeto em matéria de investimento e emprego?
O investimento do CEIIA, exclusivamente na fase de desenvolvimento da aeronave, é da ordem dos 20 milhões de euros para os próximos três anos. Mais à frente evoluirá. A estimativa de criação de novos postos de trabalho é uma grande satisfação. Contamos ter uma equipa de 65 engenheiros envolvidos em diferentes projetos de engenharia aeronáutica com diferentes clientes e parceiros, designadamente a Embraer, a Leonardo Helicopters, a Coptar, a Desaer, entre outros, que estimamos que obrigue a uma alocação plena e permanente da capacidade de engenharia. É emprego altamente qualificado. Na fase de industrialização pretendemos ter uma unidade cá e outra no Brasil e ainda a criação de uma unidade para o fabrico de componentes em Portugal que terá seguramente um efeito muito relevante de replicação num tecido de empresas que já hoje estão a trabalhar neste setor em Portugal. Algumas pequenas e médias empresas, outras até consideradas grandes e este será o efeito da criação de emprego direto, pelo facto de trazermos uma fábrica de peças de aeronaves. O objetivo é igualmente montar a aeronave em Portugal, o que terá um efeito muito grande do ponto de vista do emprego indireto pela estabilização na região do Alentejo, em Évora, em Beja, em Ponte de Sôr, cidades que estão seguramente preparadas, em termos de infraestruturas para receber um projeto desta natureza. O Alentejo poderá muito rapidamente aumentar significativamente aquilo que já hoje é o emprego muito qualificado criado à boleia de um cluster aeronáutico bastante potente.
O que torna esta aeronave sustentável e competitiva?
É uma aeronave de transporte leve e daí o nome ATL, para uso civil, de transporte de passageiros, de carga, de serviços postais e inclusivamente de suporte ao agronegócio, que em alguns países, quer da América do sul, quer de África, é bastante relevante. Também é de uso militar e aqui pode dar apoio a missões a bases remotas, evacuação médica, transporte de tropas, lançamento de paraquedistas, são tudo missões que se enquadram na tipologia desta aeronave. O ATL 100 está preparado para cumprir uma gama muito variada de missões. É mais do que aeronave, é um sistema logístico pré-preparado, ágil, para poder no mesmo dia, em curtos espaços de tempo, alterar as suas missões, quer de passageiros para carga, quer para missões de emergência médica, como de transporte de mercadorias diversas e portanto, pretende-se que seja um sistema logístico e muito flexível. Tem igualmente características muito relevantes de operação. Levanta e aterra em pistas de dimensão muito reduzida, onde a grande maioria de aeronaves não conseguiria aterrar ou levantar. Inclusivamente não se exige grande preparação dessas pistas, que podem ser em terra batida, para a aeronave poder aterrar e levantar. Por isso, também tem custos aeroportuários muito baixos.
Como é que o vosso plano de negócios se enquadra num mercado afetado pela pandemia?
O consórcio agora criado dirige-se a um mercado que está em franco crescimento. Vários fabricantes deste tipo de aeronaves, porque foram apostando em aeronaves maiores, acima dos 120 passageiros, foram abandonando esta tipologia de aeronaves que continuam a voar, mas que têm obviamente um tempo de vida útil que está estimado. Portanto, os planos de negócio que construímos em conjunto apontam para que mais de 5 mil aeronaves com esta tipologia deixem de voar nos próximos 15 anos, porque terminam o seu ciclo de vida. Isto constitui uma oportunidade para o aparecimento desta aeronave. Se a isto juntarmos o crescimento que já prevíamos, mais a tendência pós-pandemia do transporte aéreo com menos passageiros, isto pode significar um crescimento ainda maior. Portanto, estamos muito seguros que se conseguirmos cumprir o calendário de desenvolvimento e de industrialização que temos, o ATL-100 aparecerá no mercado num momento de grande fulgor para este tipo de aeronaves e com capacidade para recuperar rapidamente o investimento.
Quais são os potenciais clientes? Já existem manifestações de interesse ou contratos assinados?
O ATL-100 recebeu, ao longo dos últimos seis meses, manifestações de interesse de vários clientes, da área da defesa, da área do transporte logístico. Estamos a falar de empresas que atuam em mercados, em países, em regiões em que as áreas são muito grandes e a rede viária, na grande maioria dos casos, não permite que passageiros e carga cheguem ao destino rapidamente. Países e regiões onde existem imensos milhares de aeródromos com fraquíssimas condições para uma aeronave aterrar. Portanto, as aeronaves convencionais não têm essa capacidade. De resto, o ATL-100 é uma aeronave de trem de poiso fixo, não retrátil, não pressurizada, com alcance até 1600 kms de distância e preparado para ser muito simples. De facto, criado para fazer chegar mercadorias e passageiros do ponto A ao ponto B e que esses pontos se localizem tipicamente em zonas mais remotas, recônditas e onde é difícil uma aeronave maior, mesmo as médias, ou até um helicóptero, poder operar.
Apresentam o projeto como um “contra-ataque” aos efeitos adversos da pandemia, porquê?
Pelo emprego que vai poder criar. Pelo facto de criar emprego numa região que será especialmente afetada, porque está muito dependente de indústrias que estão a ser afetadas pela queda abrupta do tráfego aéreo e doutros impactos que sabemos na aviação comercial. Também pelo facto de poder criar muito rapidamente cadeias de fornecimento, permitindo um sem-número de empresas, algumas bem pequenas mas com potencial de crescimento significativo, empresas que já hoje integram o cluster da aeronáutica nacional e, portanto, estamos especialmente satisfeitos por ter conseguido levar a bom porto todas as negociações e equilíbrios necessários com a Desaer para podermos ter o ATL 100 em Portugal. Como objetivo final deste projeto, ambicionamos trazer para o nosso país a primeira ” Final Assembly Line “, o que significa pela primeira vez em Portugal poder haver a participação de empresas nacionais, desde o princípio até ao fim no desenvolvimento do avião. Desde o momento em que ele é concebido, passando por todas as fases de engenharia e desenvolvimento, pelas fases de ensaios, pelas fases de testes, mas também pelas fases de industrialização e de montagem. Portanto, a grande ambição deste projeto é Portugal ter pela primeira vez – e ao fim de vários anos de investimento de diferentes governos, de muitos investidores privados e empresas que arriscaram – um avião a sair daqui a voar, desenvolvido, fabricado e montado em território nacional. Juntamo-nos, assim, a um lote restrito de países europeus que conseguem ter nos seus territórios, um produto desenvolvido pelas suas indústrias, suas fábricas, seus centros de engenharia. Neste caso, um avião montado de princípio ao fim. E esta é de facto, a cereja no topo do bolo. É um percurso recente, não muito, quando comparado com o espanhol, mas coloca-nos noutra escala, numa outra fasquia, enquanto país mais preparado e com condições internas para fazer um avião do princípio ao fim.