Este artigo é de autoria do Coronel PM Fábio R. B. “Cajueiro”, presidente da Comissão de Análise da Vitimização Policial.
Texto originalmente publicado em http://www.pmerj.rj.gov.br/analise-da-vitimizacao-do-policial/.
Imagine-se uma força na qual 19,65% do seu efetivo foi morto ou ferido por causa não natural em um período de tempo. Estamos falando de qual força e guerra? Forças armadas dos EUA, Brasil? I Guerra Mundial? II Guerra Mundial? Coréia? Vietnã? Iraque? Afeganistão? Kuwait? Nenhuma dessas, falamos da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, e a “guerra” não foi declarada, mas está fazendo baixas em proporções superiores às citadas, desde 1994. A PMERJ foi empurrada para esta Guerra, nunca quis ou procurou por ela.
A situação das mortes e ferimentos de policiais militares no Rio de Janeiro é muito mais grave do que parece. Geralmente, quando divulgam os números, são contabilizados apenas aqueles em efetivo serviço, ou seja, fardados e armados tirando serviço no momento, e apenas do ano em questão, comparados com o efetivo do ano avaliado. Mas ora, o fenômeno das baixas, soma de mortos mais feridos, é muito maior, pois existem os que estão de folga, mas morrem e são feridos devido a sua condição de policial militar, podendo ser identificado por um criminoso que prendeu e voltou às ruas, ou pelo cabelo curto e barba feita que deve usar, carteira de identidade que tem que portar, arma que carrega, e pelo instinto de reconhecimento mútuo entre Policial e Bandido, entre o Bem e o Mal.
O policial de verdade, o que internalizou o “Servir e Proteger”, porta sua arma e identidade 24 X 7, e é um fator de dissuasão do crime em qualquer lugar onde esteja. Estamos sendo dizimados diariamente, em combate fardados, em combate sem farda, em acidentes causados por uma sobrecarga de adrenalina permanente no nosso sangue, em doenças psiquiátricas, neurológicas e cardíacas causadas pelos mesmos números absurdos de problemas. Para nós, todo dia pode ser o juízo final, saímos das nossas humildes casas e olhamos sempre nossos entes queridos como se fosse a última vez, pois temos a mais alta probabilidade do mundo de não voltar.
Quando tabulamos os dados das baixas por causas não naturais, adotamos a mesma metodologia norte-americana, que inclui qualquer tipo de morte e ferido por causa não natural, chegamos aos impressionantes números da Tabela 1. Note-se que estamos contando o Estado do Rio de Janeiro todo, o que merece uma explicação à parte. Existem áreas do RJ que tem níveis baixos de violência, e consequentemente número de baixas reduzido ou praticamente nulo, representadas pelo interior do Estado, que somam 50% do efetivo. Mas estamos contando esse efetivo também para efeito de cálculos, o que num refinamento óbvio, permite, infelizmente, pelo menos dobrar nossas taxas, pois o denominador vai à metade e o numerador quase não é reduzido. Se refinarmos mais ainda, e reduzirmos o Universo para unidades como 3º, 9º, 16º, 20º, 22º BPM e algumas UPP, teremos taxas de baixas proporcionais mais perversas ainda.
Em vermelho temos os mortos, em amarelo os feridos e em laranja as baixas, somatório de mortos mais feridos. Cabe ressaltar que se os números chocam, a dimensão da tragédia humana é ainda muitas vezes maior, pois estamos falando de milhares de policiais, pais, chefes de família, filhos, esposas, que deixam de voltar para seus lares como saíram, pois ou são mortos, ou retornam feridos, mutilados, incapacitados para uma vida normal, quer pessoal, quer profissional.
A maioria dos mortos e feridos acontece no período de folga, pois o policial está geralmente sozinho, ou melhor, sem apoio de outros policiais, com sua própria arma curta com restrição de calibre, sem rádio, sem colete a prova de balas, sem arma de emprego coletivo, sem carro blindado, ou seja, em inferioridade total para um confronto.
Em 23 anos, entre 1994 e 2016, a PMERJ teve 3.234 mortos e 14.452 feridos, por causas não naturais, totalizando 17.686 baixas, considerando um efetivo de 90.000 homens que serviram na Corporação, conforme a tabela 2.
Como não há comparação possível com polícias no planeta, recorremos ao Exército Brasileiro na II Guerra Mundial e as Forças Armadas dos EUA em várias guerras no século XX, que apresentam dados confiáveis, e chegamos às comparações trágicas da Tabela 3.
Em números absolutos, obviamente, os números da PMERJ são menores que o dos EUA, mas quando comparamos as taxas de mortos, feridos e baixas, a análise permite dizer que foi mais arriscado estar na PMERJ nos últimos 23 anos do que servindo na FEB ou nas forças armadas norte-americanas em qualquer guerra do século XX, incluindo as I e II Guerras Mundiais.
Como exemplos extremos, a chance de ser ferido aqui foi mais de setecentos e sessenta e cinco vezes (765,07) superior a de estando na Guerra do Golfo Pérsico (Kuwait), e a de ser morto foi mais de três vezes (3,77) a de estando na Guerra da Coréia, e três vezes (3,67) a de ter servido na Guerra do Vietnã.
Os gráficos a seguir esclarecem mais ainda o citado acima.
Numa guerra na qual a superioridade de informações, a fusão de dados, a superioridade tecnológica e a bélica, e os meios de proteção, são totais, como a do Golfo Pérsico, pela libertação do Kuwait, vemos as taxas de qualquer tipo de baixa cair drasticamente, pois tropas muito superiores enfrentam um inimigo tão inferior que em tal confronto quase não há danos para o lado vencedor. Se o confronto deveria ser raro com a Polícia, mais raras ainda deveriam ser as baixas, pois só poderiam atuar em condições de superioridade total, tais quais as da Guerra do Golfo(Kuwait).
Há algo de muito errado quando observamos estes números frios, mas que já impactam somente como grandezas e percentuais, demonstrando claramente que a PMERJ vive há 23 anos uma rotina de uma guerra, enfrentando armamento de guerra e sendo exposta a ferimentos e mortes equivalentes e superiores a guerras declaradas com forças militares enfrentando forças militares, mas contando com meios inferiores.
Cabe aqui uma comparação mais detalhada com a Guerra do Vietnã. O cenário e condições deste conflito, com enfrentamento de guerrilhas misturadas a população, com a presença de civis inocentes nos teatros de operações, e o período, são mais próximos aos do Rio de Janeiro. As Forças Armadas dos EUA, a despeito da sua total superioridade, quando submetidas à realidade de uma guerra assimétrica, perde essa vantagem e nivela o combate ao nível de armas leves, emboscadas, guerrilha e contraguerrilha, armadilhas, e somado a hesitação e dificuldades inerentes a operar em terreno pouco conhecido e com a população local misturada aos vietcongues, a aproximação com a realidade das nossas áreas de narcotráfico é maior. As condições de extrema miséria e dificuldades de infraestrutura em geral, como ausência ou precariedade de luz, água encanada, esgoto, coleta de lixo, ordenamento urbano, calçadas, ruas largas, residências identificadas, correio, também eram similares as das favelas do Rio de Janeiro, conduzindo o policial/combatente a uma exposição a um ambiente degradado, carente de tudo. As selvas e arrozais vietnamitas são aqui substituídos por barracos, lajes e vielas, nos quais muitas vezes não passam duas pessoas lado a lado.
As causas do estabelecimento de uma narcoguerra no Rio de Janeiro não são discutidas neste texto, mas é fato que desde a abertura política na década de 80, os morros e favelas cariocas acrescentaram fuzis de assalto, submetralhadoras e pistolas semiautomáticas aos arsenais do narcotráfico, e de lá para cá, com ou sem UPP, as baixas da força que efetivamente confronta estes criminosos no terreno, a PMERJ, se mantém em pelo menos 2(dois) mortos e/ou feridos por dia, inexoravelmente, há 23 anos. Estas baixas diárias são muitas vezes oriundas de um mistura de:
– Leis fracas, brandas e inadequadas,
– Meios de defesa e proteção(coletes a prova de balas, capacetes, veículos blindados, UPP em containers sem proteção balística, quartéis e cabinas frágeis) dos policiais militares precários, insuficientes ou indisponíveis,
– Meios de enfrentamento(armas letais, não letais e munições) velhos, obsoletos, mal manutenidos e inferiores em termos de qualidade, quantidade e poder de fogo,
– Treinamento deficiente, e
– Baixos salários, que obrigam o PM a trabalhar em seguranças (bicos) para complementar o rendimento e não permitem que possa adquirir os meios acima citados e o expõem a mais riscos.
Existem linhas de pensamento, pesquisa e ação a serem executadas e aprofundadas, sobre este texto e outros do gênero, para resolver estes graves problemas citados, que são:
– Criar e aprovar Lei de crime hediondo para quem atentar contra a vida de agente da lei, mandando o criminoso para outro Estado, em RDD;
– Definir quantos PM estão afastados por doenças psiquiátricas;
– Esclarecer que fatores nos conduziram e este empurrão para uma guerra entre a PM e o narcotráfico travada em alta intensidade apenas nas favelas do RJ;
– Criar um monumento aos mortos da PMERJ;
– Dotar de blindagem as células de cmt + motorista das viaturas;
– Providenciar blindagem de instalações;
– Estabelecer Plano ou Protocolo de Operações de reação a atentados contra vida de PMs;
– Recriar o GETAM(ROTA) ou equivalente, para patrulhamento pesado do RJ;
– Adquirir e acautelar com PMs coletes nível III ou IV inclusive em folga;
– Facilitar aquisição de armas, munições e blindagem de veículos, de qualquer calibre e nível;
– Realizar operações contra armas e drogas nas estradas, rodoviárias, portos e aeroportos;
– Implementar mais operações contra motos, e carros roubados e furtados;
– Estabelecer acordos com o MP, TJ, e poder legislativo para mandados coletivos de busca e apreensão/prisão nas operações da PM;
– Fim da Progressão de regime para acusados de atentado contra vida de policiais;
– Refinamento desse trabalho, análise e comparações;
– Criação de uma Fundação de Apoio àvida do Policial Militar para aprofundar estes vieses de estudo, buscar melhorias das condições de vida dos PMs, e para realizar o pagamento de recompensas a quem ajudar efetivamente na captura de assassinos de policiais militares; e
– Sensibilização dos órgãos de Comunicação (formadores de opinião) a respeito da vulnerabilidade do policial no Rio de Janeiro, com apresentação constante na mídia da realidade da PM para que a população se solidarize com a causa da Segurança Pública.
A exposição de policiais militares a ambientes hostis, em inferioridade: – De informações(ausência de dados e informações em quantidade e qualidade sobre criminosos, armas, munições, rádios, locais e horários de deslocamento e homizio), – Bélica(armas e munições velhas e insuficientes, miras mecânicas ultrapassadas, ausência de armamento orgânico nos veículos blindados), – Tecnológica(rádios deficientes e precários, ausência e/ou insuficiência de celulares, redes e acessos a internet precários e insuficientes, veículos aéreos e terrestres remotamente pilotados ausentes,sistemas computacionais precários e obsoletos) e – De proteção(blindagem de instalações, veículos, e pessoal), cria, gera, contribui e mantém esse genocídio particular na PMERJ.
O atual Comandante Geral da PM e o Secretário de Segurança, estão tratando o grave tema com a importância que tem, tendo sido inclusive criada uma Comissão de Análise de Vitimização de Policiais Militares, para estudar o problemas e propor soluções e meios de controle e redução destes números.
Ou a Sociedade, o Ministério Público, o Legislativo, o Judiciário, o Executivo e as Forças Armadas, nos ajudam a vencer este confronto, ou se corre o risco deste narcotráfico espalhar-se pelo Rio de Janeiro e Brasil, e aí podemos não ter mais como derrotar esses inimigos da sociedade, que até o momento tem massacrado só a PM, que luta diuturnamente quase que sozinha.