A viatura blindada de combate de Cavalaria média sobre rodas (VBC Cav – MSR) 8X8 é atualmente principal projeto em atividade no Exército Brasileiro (EB) e de sua escolha impactará no futuro de outros, igualmente importantes, como as modernizações das VBR 6X6 Cascavel (em desenvolvimento) e VBC CC Leopard 1A5 BR (já aprovado), e, principalmente a da futura família sobre lagartas, com a VBC CC Futuro e VBC de Infantaria (cuja prospecção de candidatos já foi autorizada e iniciada), pois garantirá o máximo de homogeneidade logística entre eles, porém a definição de armamento principal definirá como será definido o futuro de toda a força blindada pelos próximos 30 anos, no mínimo.
Dentre as três viaturas finalistas do projeto VBC Cav, somente uma ofertou o canhão de 120mm (que, coincidentemente, é o único desenvolvido especificamente para a função caça carros e não um transporte de tropas adaptado), tendo o restante ofertado 105mm, o que é extremamente preocupante, já esta decisão poderá impactar, por questões logísticas e operacionais, diretamente na escolha do próximo carro de combate do EB, já que é uma das premissas seria a fabricação da munição no Brasil.
Porém, antes de pensarmos nesta questão, vamos tentar analisar tecnicamente nas vantagens e desvantagens de cada munição e relembrar um incidente que ocorreu no EB há algumas décadas.
História e características
O calibre 105×617 mm R (STANAG 4458) nasceu no final da década de 50 para enfrentar a ameaça da nova geração de carros de combate soviéticos, a família T-54/55, em conjunto com o canhão de alta velocidade e alma raiada L7, ambos desenvolvidos com a coordenação do Royal Ordnance Factories britânico. Foi adotada como o calibre padrão dos carros de combate (“main battle tank” – MBT) da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, ou “North Atlantic Treaty Organization” – NATO) até sua substituição pelo 120mm.
Atualmente, devido a seu alcance e poder de penetração, o calibre de 105mm é considerado obsoleto para o enfrentamento aos modernos MBTs e sendo praticamente ineficaz contra blindagens do tipo reativa explosiva (“explosive reactive armour” – ERA), o que relega sua utilização somente em viaturas antigas ou leves, principalmente no papel apoio de fogo às tropas, o que faz que sua fabricação seja irregular e, por isso, por via de regra, em caso de aquisições emergenciais busca-se por estoques antigos (fato destacado durante a invasão russa na Ucrânia), o que reduz ainda mais sua eficiência balística e impõem um consumo rápido.
Já o 120×570 mm R (STANAG 4385) foi desenvolvido junto com o canhão de alma lisa Rheinmetall Rh120, em meados dos anos 60, sendo o atual calibre dos MBT da OTAN, sendo a única exceção os Challenger II britânicos. O gatilho para seu desenvolvimento foi o surgimento do T-62, sucessor do T-55, equipado com um canhão de 115 mm, também de alma lisa.
Devido ao fato de ser utilizada por praticamente todas as forças militares do ocidente, exceto em países africanos e latino-americanos (menos o Chile), sua linhas de produções estão abertas em diversas fábricas do mundo, com uma maior quantidade fabricada na atualidade, o que facilita a aquisição de lotes mais novos e com preço mais competitivos.
Outra grande vantagem do 120mm é a alma lisa de seu tubo, que além de permitir velocidades superiores, que impacta no alcance e poder de penetração, exigem bem menos manutenção e possui uma vida útil muito maior, pois tem menor desgaste que os de 105mm de alma raiada, que, por causa do acumulo de propelentes nas raias, que sofrem erosões a cada disparo.
Já no campo operacional, para a função anticarro (lembrando que o projeto VBC Cav antes se chamava viatura blindada de combate anticarro – média sobre rodas, ou VBC AC – MSR), a munição de 120mm é superior nos principais aspectos, como o alcance de 4.000 m e penetração de 760 mm em aço balístico (MIL-DTL-12560), contra 2.000 m e 560 mm, respectivamente, do 105mm (informações do próprio EB).
Outro ponto que pesa na comparação seria referente aos custos, tanto diretos como indiretos, já que hoje é fato que a munição 105mm, devido as suas características de fabricação, ser mais barata que a de 120mm, porem isso muito tem um impacto pequeno quando temos em mente o numero de disparos efetuados anualmente, principalmente com a utilização cada vez maior de meios de treinamentos e simulações auxiliares. Lembrando que como a atual estrutura fabril no Brasil é obsoleta, a fabricação de qualquer um dos calibres exigirá grandes investimentos.
Também existe a questão, no caso da adoção do 120mm, de investimento nos depósitos logísticos de armazenamento e campos de tiro, porém isso já terá que ser feito com a entrada em serviço dos substitutos das VBC CC Leopard 1A5, propostas para o final desta década ou inicio da próxima.
E, apesar de já estarem em desenvolvimento calibres superiores, que poderão substituir o 120mm (como o 130 e 140 mm), seu estágio embrionário permite afirmar que não se vislumbra sua obsolescência no curto e médio prazo.
CASCAVEL 37, um caso que não pode ser esquecido
A atual viatura blindada de reconhecimento (VBR) 6X6 Cascavel nasceu da necessidade do EB de manter a operacionalidade de sua Cavalaria Mecanizada, que na época dispunha de alguns M8 Greyhound e T17 Deerhound, recebidos no final da Segunda Guerra, que estavam em grande parte inoperantes e já obsoletos.
Sua gênese começa em 1968, após o sucesso da modernização dos M8, com o desenvolvimento do VBB-1 (Viatura Blindada Brasileira-1) 4X4, que tinha como premissa ser uma viatura simples e com características similares ao M8, inclusive no quesito armamento, porém, dois anos depois, decidiu-se que ele deveria ter um sistema de tração 6X6, surgindo assim o CRM (Carro de Reconhecimento Médio).
Este foi um projeto feito pelo EB em parceria com diversas empresas nacionais, entre elas a ENGESA S/A, que, em junho de 1971, recebeu o “Contrato de Desenvolvimento e Preparo de Protótipos”, no qual todos os estudos, projetos, desenhos industriais elaborados para o CRM e CTRA (o futuro Urutu), até o momento, incluindo os protótipos, seriam repassados a empresa para que ela iniciasse a fase de produção, passando a ser a dona do projeto. Inicialmente foram produzidos cinco veículos pré-série, agora denominados de CRR (Carro de Reconhecimento sobre Rodas), depois acrescentadas mais três, que foram apelidados de “Cascavel Magro”, posteriormente.
Em 1973, vislumbrando a possibilidade de entrar no mercado internacional de fornecedores de Blindados, a ENGESA resolve oferecer também seu novo blindado, porem fica claro que o canhão de 37 mm, em uso no EB, não atrairia as atenções dos compradores estrangeiros e por isso resolveu-se equipá-lo com o uma arma mais poderosa. Após algumas negociações são adquiridos adquirir uma torre e dois canhões de 90 mm franceses, comercializados pela SOFMA, para serem utilizados no novo projeto (mais largo, para receber a torre) agora denominado EE-9 Cascavel (“EE” da marca “DUPLOÊ”, de Engenheiros Especializados, e “9” de nove toneladas, o peso estimado do veículo).
Após isso o EB fez diversas aquisições de Cascavel (mais de 100), porém, mesmo com a possibilidade de utilizar um canhão de 90 mm (na época a ENGESA já produzia um canhão nacional), optou por manter o obsoleto canhão de 37 mm que gerou uma situação, no mínimo, inusitada: a produção de diversos chassis de Cascavel sem torre, que eram estocados no Depósito Regional de Motomecanização da 2ª Região Militar (DRMM/2), atual 22º Depósito de Suprimento (22º D Sup), de Barueri (SP), devido à enorme dificuldade de se recuperar e adaptar a torre e o armamento dos antigos CCL Stuart.
Esta situação só mudou no inicio da década de 80, após as incríveis vitórias das VBR Cascavel (na mão de militares líbios) contra oponentes teoricamente mais poderosos durante o rápido conflito entre a Líbia e o Egito. Isso atrasou em muitos anos a operacionalidade de nossa Cavalaria mecanizada, além de aumentar o custo de todo o programa, pois as torres antigas tiveram que serem todas substituídas.
O EMPREGO PELO EXÉRCITO
Os principais argumentos dos defensores do 105mm para a VBC Cav seriam o nosso teatro de operação e a doutrina empregada pelo EB.
No caso do teatro de operações da atualidade é uma realidade que uma viatura moderna dotada com um armamento de um de 105mm é capaz de enfrentar, com grande chance de sucesso, a maioria dos atuais blindados utilizados pelos países da América do Sul, porém isto pode ser uma armadilha, já que se trata de uma aquisição para ficar em uso por, pelo menos, 40 anos, e este cenário não permanecerá estático, já que muito países estão apresentando requisitos para seus futuros carros de combate com canhão de 120mm.
Sobre a doutrina, se levamos em conta a implantada nos anos 40, onde as unidades de Cavalaria mecanizada tinham como missão apenas o reconhecimento e segurança, utilizando de sua elevada mobilidade, deveriam evitar o engajamento e em um combate com o oponente, a outras forças, não cumprindo primordialmente as missões antitanque, realmente o calibre de 105mm também atende e aumenta suas capacidades operativas.
Porém, levando-se em conta a criação da doutrina de Infantaria Mecanizada no EB (que ainda está em implantação), que leva em conta a experiência de guerra dos exércitos modernos, envolvidos em conflitos recentes (e não os antigos conceitos da Segunda Guerra Mundial), o conceito de poder de fogo assume uma importância tão grande quanto à mobilidade.
É verdade também que, para a função de apoio de fogo o calibre de 105mm possui algumas vantagens decorrentes da maior oferta de tipos de munições específicas, é importante ressaltar que com inicio da modernização das VBR Cascavel e a utilização das VBTP-MSR Guarani com SARC UT30BR, a nova VBC Cav pode ser reservado para missões anticarro (como originalmente idealizado) e ações de choque, onde o maior poder de fogo traz mais vantagens.
Outro ponto a ser destacado o fato do EB ter anunciado que pretende modernizar apenas 52 VBC CC Leopard e aprovado a diretriz para a prospecção inicial de seu sucessor (Portaria – EME/C Ex Nº 877, de 26 de setembro de 2022), porém em uma quantidade de apenas 65 viaturas, deixa implícito que a VBC Cav irá assumir o “protagonismo” nas ações de choque nas brigadas mecanizadas.
CONCLUSÃO
Do ponto de vista dos aspectos operacionais relativos ao emprego da VBC Cav dotada com canhão 105 ou 120mm, conclui-se que os dois calibres se equiparam na realidade atual (mas não futura), com significativa vantagem ao canhão 120mm em termos de maior letalidade e dissuasão regional, em operações ofensivas e defensivas (movimento retrógrado) em que tenha que combater um inimigo que esteja empregando VBC CC, o que contribui para estes sejam decisivos no moderno cenário de emprego.
Usar como argumentação o modus operandi dos exércitos dos países da OTAN (que possuem uma realidade completamente diferente da nossa) é uma forma um tanto simplista de defender seu ponto de vista, mas, analisando tudo o que foi escrito acima, e, na opinião deste autor, a Força não pode abrir mão de dar um salto para o futuro, evoluir, adotando uma solução mais adequada a sua realidade atual e futura, ou correr o risco de cometer o mesmo equívoco dos anos 70…
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Respostas de 18
Excelente!
Parabéns Paulo Bastos, que artigo sensacional. Também vejo como uma oportunidade do EB evoluir e se aproximar dos melhores exércitos em termos de equipamento e armamento.
Acho que se considerarmos os dois possíveis adversários na América do Sul, Argentina e Venezuela, com certeza a munição de 120mm trará muitas vantagens sobre o primeiro e a equiparação com o segundo, visto que os T-72B1 venezuelanos usam um canhão de 125mm.
Não podemos pensar que tanto a Argentina quanto a Venezuela nunca serão nossas inimigas militares, pois fora essas duas nações nenhuma outra terá condições de nos enfrentar no futuro, levando à pergunta de “para que forças armadas ?”.
Aliás, essa portaria citada tem muitas coisas interessantes, pois nela há o início do grupo de estudos para aquisição de defesa antiaérea de médio alcance, da viatura 6×6 de comando e também da de morteiros, além da viatura de combate de fuzileiros.
Bastos, o Challenger 2, tanto quanto o 1, usa canhão 120 mm.
Projétil de 120 mm de diâmetro, mas com munição diferente.
Eles possuem canhão de alma raiada.
Ah, certo. Obrigado.
O Centauro II é na prática, um VBC CC SR. O canhão de 120 mm faz amplo sentido dentro do contexto de que este meio é um VBC CC SR e isso seria ponto pacificado, se estes meios estivessem contidos em uma estrutura própria, compondo uma força média de caracter de armas combinadas…
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A questão primordial, não canhão de 105 mm vs canhão de 120 mm, mas sim a falta de mais canhões 30 x 173 mm e Carl Gustav Mk4 dentro da estrutura, já que estes são os grandes multiplicadores de forças que estariam nas mãos da infantaria para pronto uso.
Excelente comentário bardini, também penso dessa maneira.
Precisamos de um VBC mas poderia esperar, a maior necessidade no momento é dotar com meios multiplicadores ( Carl gustav, alac/at4, spider, miras holográficas, ia2, mini drones, etc) a lista é grande.
Acho a compra de mais canhões de 30mm e vbl lince deveriam ser a prioridade nesse momento.
Não dá para esperar não, o EB tem apenas 30% dos 220 leopards 1a5 operacionais e perto de 100 operando com restrições, o resto está parado.
Sobre prioridades, No meu entendimento, nossas 5 maiores são em ordem:
1) Sistemas de Guerra Eletrônica, táticos e estratégicos, ofensivos e defensivos. Estamos muito atrasados nessa frente e sem capilaridade alguma dentro da estrutura.
2) Renovação em ampla escala dos equipamentos/ armamentos individuais e coletivos (Fardamento, Comunicadores, Míssil AC, CSR, Fuzil, Metralhadora, Lança Granada, etc)
3) UAVs de diferentes categorias, para ampliar consciência situacional no terreno e Loitering Munitions para realizar neutralização de sistemas inimigos (Nauru, Harop, etc…)
4) AAAe (média altitude, C-UAS)
5) Sistemas de Artilharia (AV-SS 40G e afins, Spike NLOS, Matador, novos Obuseiros 155 mm, morteiro…)
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Dentro do que você apontou, só o que será gasto na modernização indefinida do Cascavel, se ela seguir adiante, possibilitaria a aquisição de centenas de blindados 4×4 da IDV, quase batendo a caso do milhar. Isso, por si só, seria uma grande revolução para nossa infantaria e geraria massa a força terrestre.
O Cascavel poderia ser relegado a função de apoio de fogo em cenários de combate aproximado de menor valor tático, do jeito que está e dentro de unidades próprias.
Um adendo interessante a sua colocação sobre os blindados 4×4 da IDV, Bardini.
Os ucranianos estão avançando sobre os russos num ataque com armas combinadas aonde os Humvees e alguns MRAP exercem um papel fundamental, entrando rapidamente com a infantaria sobre setores aonde a defesa russa é menos intensa – creio que locais previamente indicados pela OTAN.
A quantidade de vídeos de soldados ucranianos com Humvees no Telegram cresceu de forma absurda. Aumentou tanto que custo a acreditar que os EUA enviaram apenas os 200 que foram anunciados. O número real deve ser muito maior.
Por isso a importância do nosso EB comprar o máximo de unidades de Linces. Nessa guerra moderna a agilidade que esse tipo de veículo oferece as tropas é fundamental.
O Brasil já produz alguma munição de 120 mm ?
Não, estamos começando a produzir munições HE e HESH de 105mm.
Gostei do texto e alguns comentários. Se usarmos a matemática e a filosofia, a lógica é a razão, induz estarmos atualizados e caminhando p frente, ou tentando equiparar aos maiores e ou melhores. Logo o calibre de 120 mm é necessário p os dias atuais ou contemporâneo. Tem um ensinamento em filosofia e em religiões do tipo ” o homem no mundo “, ” homem novo, homem velho “, há necessidade de mudar as velhas ideias ou doutrinas e partir p o novo, ou certo ou o futuro. Se vc comprar algo novo hoje, amanhã é passado ou defasado, principalmente p máquinas e equipamentos. Sou a favor de mudar as mentalidades e partir p as forças armadas progressivas e de equipamentos certos sem precisar fazer reformas ou concertos “dias depois…”, tem q sobrar recursos p novos equipamentos e cursos e formações, por isso tem q fazer a escolha certa, refletindo, meditando e analisando agora, p não lamentar os erros, e gastar dinheiro da saúde, educação, moradia, transportes…, nas más escolhas de ” outros “…, abraços.
Boa matéria. Mas caso os principais decisores do EB compartilhem da mesma visão, então todo esse processo do VBC CAV é perda de tempo. Deveriam ter negociado diretamente com os italianos desde o início, ou deveriam permitir blindados que ainda não estão totalmente integrados com um canhão de 120mm mas que tenham condições de fazerem a integração em curto tempo e baixo risco, poderia ter o Eitan com 120 mm, o Patria AMV, o próprio LAV700 com canhão 120.
“a fabricação de qualquer um dos calibres exigirá grandes investimentos”
Aqui se resume toda minha opinião, já estamos na hora de ir para o 120mm e aproveitar a oportunidade….investir em 105mm é rasgar dinheiro
Bom dia de Sexta-Feira a todos os Senhores Camaradas do TECNODEFESA!
Inicialmente parabéns a toda a equipe e a ti Bastos por mais uma excelente reportagem!!! Esclarecedora, matéria limpa e muito clara para o entendimento.
Alguns sites internacionais estão dando conta de que a Leonardo teria oferecido instalar uma planta de produção da torre Hitfact MKII, na IVECO de MG visando não apenas o Centauro II como o escolhido, mas também tendo na “visada” a modernização dos Leopard 1A5BR. Diante desta possibilidade, vejo o calibre 120mm como o futuro certo do EB.
Sgtº Moreno (CM)